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Resumo

  • O julgamento e o livro que daí resultou — Eichmann em Jerusalém — deram origem a um dos conceitos mais inquietantes da filosofia política contemporânea.
  • Formada por Heidegger (com quem teve uma relação pessoal e filosófica ambígua) e Jaspers, Arendt recusou sempre a filiação a uma escola de pensamento ou a um partido.
  •  quando a moral é dissociada do trabalho, e o pensamento ético é visto como irrelevante, os sistemas tornam-se máquinas que matam com eficiência — e sem remorso.

Reportagem de fundo


Numa sala austera em Jerusalém, em 1961, senta-se Adolf Eichmann, ex-oficial nazi acusado de organizar a deportação de milhões de judeus. O mundo espera ver um monstro. O que encontra é um funcionário acanhado, de óculos espessos e frases feitas. Ao observá-lo, a filósofa Hannah Arendt escreve: “não era estupidez, era uma espécie de vazio — um fracasso em pensar.”

O julgamento e o livro que daí resultou — Eichmann em Jerusalém — deram origem a um dos conceitos mais inquietantes da filosofia política contemporânea: a banalidade do mal. Para Arendt, o mal absoluto pode ser cometido por pessoas absolutamente normais, desde que renunciem ao pensamento crítico, à empatia e ao julgamento.

Este conceito, tão discutido quanto mal compreendido, está longe de ser um artefacto do passado. Pelo contrário: no século XXI, a sua actualidade é avassaladora. Do funcionário que aplica políticas injustas sem questionar, ao algoritmo que desumaniza decisões, ao político que banaliza a mentira — o mal continua, e banaliza-se.

Mas o pensamento de Arendt vai muito além de Eichmann. As suas reflexões sobre totalitarismo, responsabilidade moral, burocracia, verdade e liberdade são, hoje, ferramentas indispensáveis para quem procura compreender — e resistir — ao fascismo moderno.


A génese do pensamento: entre o exílio e a lucidez

Hannah Arendt nasceu em 1906, em Linden, na Alemanha. De origem judaica, foi forçada a fugir do país após a ascensão do nazismo. Viveu como apátrida durante quase duas décadas. Essa experiência marcou o seu pensamento. Para Arendt, não há filosofia neutra quando a dignidade humana está em jogo.

Formada por Heidegger (com quem teve uma relação pessoal e filosófica ambígua) e Jaspers, Arendt recusou sempre a filiação a uma escola de pensamento ou a um partido. A sua obra é, por isso, profundamente livre — e por vezes desconcertante.

Em As Origens do Totalitarismo (1951), traça as raízes históricas e ideológicas do nazismo e do estalinismo. Não os vê como aberrações, mas como culminar de processos sociais, culturais e políticos que dissolveram o tecido cívico europeu: o antissemitismo, o imperialismo, a atomização social e a ficção ideológica.


Eichmann: um espelho desconfortável

O choque com Eichmann decorreu precisamente dessa observação. Arendt não viu ali um génio do mal. Viu um funcionário eficaz, preocupado com a carreira, incapaz de imaginar o outro. O seu crime não foi a crueldade, mas a ausência de pensamento. “Seguia ordens”, repetia. E fê-lo com zelo.

Este diagnóstico — de que o mal pode ser cometido sem ódio — desencadeou uma fúria que ainda hoje ecoa. Críticos acusaram Arendt de relativizar o Holocausto, de desculpar Eichmann, até de culpar as vítimas. Alguns estudiosos, como Bettina Stangneth, argumentaram que Arendt foi ingénua — que Eichmann era um antissemita convicto e não apenas um idiota obediente.

Mas a força do conceito da banalidade do mal está precisamente na sua universalidade. Se o mal é apenas radical, metafísico ou monstruoso, só monstros podem cometê-lo. Se é banal, qualquer um de nós pode ser cúmplice — sem saber.


A burocracia como engrenagem do mal

O caso da EGELI, organismo fascista italiano que geriu a expropriação de propriedades judaicas, mostra como a administração pública pode tornar-se cúmplice da violência. A linguagem usada era técnica. As vítimas tornavam-se “objectos”, “activos”, “propriedades judaicas”. O horror escondia-se em relatórios e carimbos.

Arendt alerta para este perigo: quando a moral é dissociada do trabalho, e o pensamento ético é visto como irrelevante, os sistemas tornam-se máquinas que matam com eficiência — e sem remorso.

Nos dias de hoje, quantas decisões políticas automatizadas, aplicadas sem consideração humana, perpetuam essa lógica? Políticas migratórias, sistemas de apoio social informatizados, algoritmos judiciais. A tecnologia tornou-se o novo rosto do automatismo moral.


O totalitarismo como processo — e não como episódio

Outro dos grandes contributos de Arendt é a definição do totalitarismo não apenas como regime, mas como lógica. Um processo que inclui:

  • a destruição da verdade factual;
  • a instrumentalização da mentira como forma de governo;
  • a dissolução das fronteiras entre o público e o privado;
  • a atomização da sociedade, onde o cidadão deixa de agir colectivamente.

Estas características podem emergir sem que o regime mude de nome. Democracias formais podem albergar impulsos totalitários — quando toleram o discurso de ódio, desmantelam o serviço público, criminalizam a dissidência ou promovem a cultura da obediência cega.

E Portugal?

Num país onde o discurso antidemocrático já chegou ao Parlamento e onde a desinformação circula impune nas redes sociais, as categorias de Arendt ajudam a nomear os riscos. A confiança nas instituições esvanece, o discurso de desumanização alastra, e a política degrada-se em espectáculo de cinismo.

A História ensina-nos que os regimes totalitários ascendem por vias legais, e não por golpes armados.


Pensar: o último reduto da liberdade

Na sua obra inacabada A Vida do Espírito, Arendt dedica-se a explorar o pensamento como prática política. Não pensar é, para ela, o maior perigo. Pensar é interromper a máquina. É recusar o automatismo. É recusar a frase “estava só a fazer o meu trabalho”.

Pensar é também julgar, e julgar implica imaginar o outro — sentir a sua dor, antecipar o impacto das nossas acções. Essa imaginação ética é a pedra angular de qualquer sociedade decente.

Arendt não acreditava em sistemas salvadores, mas em indivíduos responsáveis. A resistência, para ela, era profundamente pessoal: começa no pensamento, prolonga-se na palavra e culmina na acção.


Arendt hoje: uma bússola para o futuro

Hannah Arendt morreu em 1975. Mas o seu pensamento está mais vivo do que nunca. Num mundo onde a verdade é disputada, a mentira é monetizada, e o outro é visto como ameaça, o seu apelo permanece: pensar, julgar, resistir.

A banalidade do mal não desapareceu. Apenas ganhou novas formas. Está no silêncio cúmplice, no funcionário obediente, no político cínico, no algoritmo impiedoso.

E, por isso, a pergunta permanece: estamos a pensar o suficiente para não matar — nem por palavras, nem por omissão, nem por rotina?

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