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Resumo

  •  A falta de reconhecimento institucional, a ausência de indemnizações adequadas, o esquecimento colectivo, tudo isso agravou a dor.
  • Viveram com a ideia de que o país que libertaram os queria rapidamente calar.
  • Em países como a Argentina, o Chile ou a África do Sul, os sobreviventes da repressão tiveram acesso a comissões de verdade, apoio psicológico gratuito, centros de memória, indemnizações com acompanhamento terapêutico.

“Durante anos, acordava a meio da noite a gritar. Mas não sabia porquê.”
O testemunho é de Ana P., filha de um preso político torturado pela PIDE em 1967. O pai morreu em 1993 sem nunca ter conseguido falar do que viveu na António Maria Cardoso. O trauma foi-lhe tatuado na carne e herdado, em silêncio, pela família. E não é caso único. Milhares de vítimas da repressão salazarista carregaram feridas invisíveis, quase sempre ignoradas — pela sociedade, pelo Estado, pela própria história.

A tortura deixa marcas físicas. Mas deixa também — e talvez sobretudo — cicatrizes psíquicas profundas, difíceis de diagnosticar, de tratar, de reconhecer publicamente. Esta reportagem revela essas dores adiadas: os traumas de quem sobreviveu à violência da PIDE e as ondas de choque que ainda hoje atingem filhos, netos, companheiros.


O impacto da repressão para além da cela

Entre 1933 e 1974, milhares de portugueses foram presos, interrogados e torturados pela polícia política. Alguns passaram meses em celas solitárias, outros anos sem contacto com o exterior. Muitos foram espancados, privados de sono, humilhados, sujeitos a abusos psicológicos e físicos.

No imediato pós-25 de Abril, a libertação dos presos políticos trouxe alívio, mas não cura. Pouco se falou em stress pós-traumático. Muito menos em acompanhamento psicológico. A narrativa dominante foi de resistência heróica, silenciando as fragilidades humanas que a tortura inevitavelmente impõe.

O psiquiatra Joaquim Soares, que atendeu dezenas de ex-presos nos anos 80 e 90, recorda:

“Eles não vinham por trauma. Vinham por insónias, ansiedade, alcoolismo, mas recusavam associar isso ao que tinham vivido. Havia vergonha. Como se admitir dor fosse trair a resistência.”


Feridas não visíveis, mas reais

Segundo um estudo de 2007 da Universidade de Lisboa, mais de 65% dos ex-presos políticos acompanhados apresentavam sintomas consistentes com perturbação de stress pós-traumático (PTSD). Outros sofriam de depressão crónica, ataques de pânico, sentimentos de culpa, isolamento social.

O padrão repete-se em muitos testemunhos:

  • Memória fragmentada ou apagada de certos períodos de detenção;
  • Dificuldades de intimidade e relacionamento;
  • Desconfiança generalizada;
  • Reactivação do trauma ao ver fardas, ouvir sirenes, ou simplesmente lembrar um nome de código.

Muitos não procuraram ajuda. Outros foram medicados com ansiolíticos sem qualquer abordagem psicoterapêutica. As estruturas de saúde pública, sobretudo até aos anos 2000, não estavam preparadas para tratar traumas históricos.


Herança emocional: o trauma transgeracional

Vários estudos em psicologia traumática demonstram que o trauma pode ser transmitido de geração em geração, não apenas por narrativas familiares, mas por mecanismos emocionais inconscientes.

Filhos de ex-presos relatam episódios de raiva inexplicável, medo do silêncio, crises de ansiedade em contextos de autoridade. Muitos cresceram com pais emocionalmente ausentes, paranoicos, alcoolizados, ou, inversamente, hipervigilantes e obsessivamente controladores.

A psicóloga Lúcia Coelho, que acompanha famílias de antigos presos políticos, afirma:

“Há famílias inteiras estruturadas em torno de um trauma não verbalizado. As crianças crescem a sentir o peso de algo que não sabem nomear. E isso condiciona afectos, decisões, trajectórias.”


Quando o silêncio dói mais que a tortura

Para muitas vítimas, o pós-repressão foi mais difícil que o cativeiro. A falta de reconhecimento institucional, a ausência de indemnizações adequadas, o esquecimento colectivo, tudo isso agravou a dor. Viveram com a ideia de que o país que libertaram os queria rapidamente calar.

A ex-presa política Isabel do Carmo testemunhou num colóquio recente:

“Depois da prisão, eu queria gritar o que me tinham feito. Mas diziam-me: ‘não compliques, agora é tempo de construir’. Era como se contar fosse inconveniente.”

Outros nunca contaram. Levaram a dor para o túmulo. Alguns, como Alfredo R., detido em 1973, suicidaram-se anos depois, sem nunca falar do que viveram.


Onde está a justiça emocional?

Em países como a Argentina, o Chile ou a África do Sul, os sobreviventes da repressão tiveram acesso a comissões de verdade, apoio psicológico gratuito, centros de memória, indemnizações com acompanhamento terapêutico. Em Portugal, a resposta foi tímida.

Só em 2017 foi criada uma linha de apoio psicossocial para vítimas da repressão, com financiamento instável. Os centros de saúde não possuem formação específica em trauma histórico. E as associações de vítimas operam com recursos escassos.


Uma memória que ainda dói

A dor da tortura não pertence apenas ao passado. Pertence às noites mal dormidas de quem sobreviveu. Aos gestos bruscos de quem viveu sob ameaça constante. Aos silêncios herdados por filhos e netos. À ausência de rostos nos livros de História.

Reconhecer o sofrimento mental das vítimas da PIDE é um dever democrático, não um acto de caridade.


Propostas em debate

  • Criação de um Centro Nacional de Acompanhamento Psicossocial de Vítimas da Repressão;
  • Incorporação do estudo do trauma histórico nos cursos de Psicologia e Serviço Social;
  • Campanhas públicas de memória e reconhecimento emocional;
  • Abertura de espaços de escuta para famílias afectadas.

Porque o corpo pode esquecer. Mas a alma, tantas vezes, não consegue. E um país que quer ser livre tem de olhar de frente para o que deixou por curar.

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