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Resumo

  • Nesta análise, traçamos as causas e consequências dessa impunidade, identificamos os mecanismos formais e informais que bloquearam os julgamentos, e debatemos até que ponto a ausência de justiça contribuiu para uma democracia com zonas de sombra.
  • Em vários países que romperam com regimes autoritários — da Alemanha pós-nazi à Argentina pós-Videla — os tribunais assumiram o papel simbólico e político de clarificar responsabilidades, distinguir vítimas de carrascos, restabelecer a verdade.
  • A politização do processo — com o PREC, as divisões no MFA e o clima de polarização — também minou a legitimidade e eficácia dos julgamentos.

Portugal depôs a ditadura. Libertou os presos. Redigiu uma nova Constituição. Mas não julgou a polícia política.
O 25 de Abril foi a alvorada da democracia, mas não levou à responsabilização efectiva dos crimes cometidos pela PIDE/DGS. A esmagadora maioria dos seus agentes — muitos deles implicados em tortura, desaparecimentos, vigilância abusiva e repressão sistemática — nunca enfrentou a justiça penal nem a justiça histórica. E esse vazio ético permanece até hoje como um incómodo irresolvido da nossa transição democrática.

Nesta análise, traçamos as causas e consequências dessa impunidade, identificamos os mecanismos formais e informais que bloquearam os julgamentos, e debatemos até que ponto a ausência de justiça contribuiu para uma democracia com zonas de sombra.


Um país sem Nuremberg

Em vários países que romperam com regimes autoritários — da Alemanha pós-nazi à Argentina pós-Videla — os tribunais assumiram o papel simbólico e político de clarificar responsabilidades, distinguir vítimas de carrascos, restabelecer a verdade. Em Portugal, esse momento nunca chegou.

A polícia política do Estado Novo — primeiro PVDE, depois PIDE, finalmente DGS — foi responsável por mais de 30.000 detenções políticas, centenas de mortes documentadas, uso sistemático de tortura e redes de informadores com alcance nacional. E, no entanto, nenhum dos seus principais dirigentes foi condenado por crimes contra a humanidade.


A Lei n.º 8/75: entre a esperança e o silêncio

A Lei n.º 8/75, publicada em Abril de 1975, previa a extinção da PIDE/DGS e da Legião Portuguesa, e estabelecia os mecanismos de saneamento e julgamento. Foram abertos cerca de 400 processos judiciais, muitos deles levados a cabo por tribunais militares criados de forma transitória.

Mas os resultados foram tímidos:

  • A maioria dos processos foi arquivada por falta de provas, devido à destruição de arquivos e à ausência de testemunhos.
  • Algumas condenações resultaram em penas suspensas ou simbolicamente leves.
  • Muitos agentes apresentaram atestados médicos, fugiram do país ou beneficiaram de redes de protecção.

Exemplos como Silvério Marques, director-geral da DGS, foram poupados ao julgamento efectivo, sendo posteriormente integrados noutros sectores ou emigrando. A figura de Fernando Gouveia, implicado na vigilância a opositores no Porto, ficou sem processo devido à “insuficiência de elementos materiais”.


Tribunais militares: justiça adiada

A escolha de tribunais militares como instância de julgamento foi controversa. Apesar de operarem sob controlo revolucionário, muitos juízes e procuradores mantinham ligações à estrutura judicial do Estado Novo. A resistência a punições duras, o medo de reacções institucionais e a pressão para garantir estabilidade impediram uma justiça consequente.

A politização do processo — com o PREC, as divisões no MFA e o clima de polarização — também minou a legitimidade e eficácia dos julgamentos. Os processos arrastaram-se, prescreveram ou foram arquivados sem alarde.

Segundo o jurista Rui Pena Pires, “o país optou por reconciliar-se depressa, mesmo que isso significasse esquecer. Mas esqueceu-se da dignidade das vítimas.”


Reintegrações e reciclagens

Com o passar dos anos, muitos ex-agentes da PIDE/DGS foram reintegrados discretamente na administração pública, em câmaras municipais, serviços alfandegários, forças de segurança ou empresas estatais. Outros abriram negócios ou emigraram sem qualquer sanção judicial.

Num relatório de 1981 do Ministério da Administração Interna, constavam mais de 200 ex-colaboradores da polícia política em funções administrativas. A Lei de Saneamento raramente era aplicada com rigor — e não houve mecanismos de lustration, como os implementados na Checoslováquia ou na Polónia pós-comunista.


As vítimas ficaram à porta

Enquanto isso, as vítimas da repressão foram empurradas para os corredores do esquecimento. Indemnizações simbólicas, escasso apoio psicológico, nenhuma reparação moral em sede judicial.

José Mário Branco, artista e ex-preso político, afirmou em entrevista à RTP:

“O tipo que me bateu nas costas com um bastão pode estar hoje a gerir uma farmácia. E eu tive de sair do país para respirar. É isto justiça?”


Justiça e transição: o dilema português

A transição portuguesa teve méritos inegáveis: foi pacífica, evitou uma guerra civil, democratizou em profundidade. Mas teve um preço. E parte desse preço foi uma justiça amputada, um julgamento que nunca se concretizou.

A escolha pelo esquecimento em nome da estabilidade teve consequências:

  • Memória fragmentada e narrativa histórica parcial;
  • Deslegitimação simbólica da justiça de transição;
  • Impunidade percebida, que mina a confiança nas instituições democráticas.

A historiadora Irene Flunser Pimentel resume o impasse:

“Houve revolução. Mas não houve catarse judicial. E isso tem custos invisíveis, mas duradouros.”


O que fazer com este passado?

A questão não é apenas jurídica. É política, cultural, pedagógica. A justiça punitiva pode estar fora de alcance, mas a justiça simbólica e histórica continua em aberto. Propostas como:

  • Criação de uma Comissão da Verdade e Justiça Histórica, com funções de investigação e reparação;
  • Revisão dos arquivos e levantamento das reintegrações indevidas;
  • Memorial nacional com os nomes das vítimas documentadas;
  • Revisão dos manuais escolares para incluir a ausência de julgamento como parte da narrativa da transição.

Uma democracia plena precisa de justiça plena. E enquanto os crimes da PIDE permanecerem por julgar, a Revolução de Abril ficará — em parte — por cumprir.

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