Resumo
- Desde 2019, o partido tem apresentado iniciativas parlamentares que visam, por exemplo, a revogação da Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas, a abolição da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, ou a criminalização do que chamam “ideologia de género”.
- Ao promover a ideia de que as minorias beneficiam de “excessos legais” ou de “discriminação positiva”, o discurso da extrema-direita reconfigura o centro do debate político.
- Organizações como a ILGA Portugal, o SOS Racismo e a Associação Letras Nómadas registaram, entre 2020 e 2024, um aumento de denúncias de agressões, insultos e discriminações motivadas por raça, género ou orientação sexual.
Como a retórica e acção política da nova direita radical ameaça as garantias democráticas
Num momento em que partidos de extrema-direita conquistam assentos parlamentares e influência institucional em vários países europeus — Portugal incluído — cresce a preocupação com os efeitos reais dessas forças políticas na vida das minorias étnicas, religiosas, sexuais e sociais. Muito para além da retórica de campanha, a acção legislativa desses partidos já está a ter impactos concretos em políticas de igualdade, inclusão e cidadania.
Quem perde quando a extrema-direita ganha?
A nova gramática da exclusão
O Chega, em Portugal, tornou-se o rosto mais visível desta nova vaga. O seu discurso é ostensivamente nacionalista, moralista e punitivista. Menos visível, mas igualmente grave, é a forma como este discurso se traduz em propostas legislativas, condicionamento do debate público e pressão sobre políticas inclusivas.
Desde 2019, o partido tem apresentado iniciativas parlamentares que visam, por exemplo, a revogação da Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas, a abolição da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, ou a criminalização do que chamam “ideologia de género”.
Para a jurista Sara Mendes, estas propostas não têm apenas valor simbólico. “Elas introduzem no espaço parlamentar um novo campo semântico, onde os direitos humanos são apresentados como privilégios ou ameaças à soberania nacional.”
Ao promover a ideia de que as minorias beneficiam de “excessos legais” ou de “discriminação positiva”, o discurso da extrema-direita reconfigura o centro do debate político. O resultado é o recuo — ou a paralisação — de políticas públicas fundamentais.
O ataque à arquitectura legal da igualdade
Os efeitos não se limitam às propostas de lei. O simples facto de haver deputados a questionar a existência de discriminação racial ou a legitimidade do activismo feminista tem consequências institucionais. Comissões parlamentares, entidades reguladoras e até programas escolares tornam-se alvos de desconfiança, boicote ou desfinanciamento.
A Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), por exemplo, tem sido atacada em vários discursos como “estrutura ideológica do socialismo”. O mesmo sucede com o Alto Comissariado para as Migrações, alvo de repetidas propostas de extinção ou fusão com organismos “menos politizados”.
Na prática, estas tentativas contribuem para deslegitimar as instituições que zelam pelos direitos das minorias, tornando-as vulneráveis a cortes orçamentais, perda de autonomia e substituição de dirigentes por perfis alinhados com visões conservadoras.
“Não é preciso revogar leis para limitar direitos”, adverte o constitucionalista Rui Tavares. “Basta asfixiar as instituições que os protegem.”
Representação sem voz
Paradoxalmente, o crescimento da extrema-direita ocorre num cenário de sub-representação persistente das minorias no espaço político formal. O número de deputados afrodescendentes, ciganos, muçulmanos ou LGBTQIA+ no Parlamento português continua a ser irrisório.
Em 2019, a eleição da deputada Joacine Katar Moreira foi saudada como um marco simbólico. Mas a sua curta permanência no hemiciclo — marcada por hostilidade, isolamento e ataques racistas — demonstrou as barreiras profundas à inclusão efectiva.
A mesma sorte tiveram outras figuras racializadas que tentaram entrar no espaço político: a visibilidade veio acompanhada de campanhas de difamação e discursos de ódio, em muitos casos normalizados pelos próprios rivais parlamentares.
“A extrema-direita não contesta apenas as políticas de igualdade — ela procura inibir quem as representa”, observa o sociólogo Miguel Cardina.
Efeitos sobre o quotidiano das minorias
As consequências desta hostilidade institucional estendem-se ao quotidiano. Quando o discurso anti-imigração, anti-romani ou anti-LGBT se torna parte do discurso público legitimado, o preconceito ganha confiança — e violência.
Organizações como a ILGA Portugal, o SOS Racismo e a Associação Letras Nómadas registaram, entre 2020 e 2024, um aumento de denúncias de agressões, insultos e discriminações motivadas por raça, género ou orientação sexual.
Mais alarmante ainda é o impacto sobre a saúde mental das comunidades visadas. Estudos conduzidos por psicólogos sociais revelam um aumento da ansiedade, do isolamento e do medo em jovens pertencentes a minorias, sobretudo nas regiões onde os partidos de extrema-direita têm maior representação.
“O discurso do ódio, quando validado pelas instituições, destrói o tecido da cidadania”, afirma a activista Maria José Vicente. “Não estamos só a perder direitos — estamos a perder pertença.”
Um desafio à democracia substantiva
A presença institucional da extrema-direita é, em si mesma, legítima num regime plural. O problema começa quando essa presença é usada para minar os fundamentos do próprio pluralismo: a igualdade, a não-discriminação, a inclusão activa dos grupos historicamente oprimidos.
A erosão dos direitos das minorias não acontece com um golpe. Acontece por acumulação de gestos: o silêncio cúmplice, a cedência discursiva, a reconfiguração dos termos do debate.
Numa democracia que se quer madura, os direitos das minorias não podem ser referendáveis. Não são concessões — são garantias constitucionais.
Resistir à invisibilização
Frente a esta ofensiva, multiplicam-se as reacções da sociedade civil. Petições, manifestos, coligações intersectoriais, acções judiciais e actos simbólicos procuram defender o espaço cívico da igualdade. Jovens activistas racializados, movimentos feministas interseccionais e redes queer emergem como actores centrais desta resistência.
A batalha não é apenas legislativa — é cultural, pedagógica, mediática. E exige uma resposta ampla, transversal e informada.
Porque quando as urnas calam as vozes das minorias, deixa de haver democracia para todos.