Resumo
- O novo campo de batalha é o jurídico — e a democracia é a grande lesada.
- Como detalha o relatório “Crítica a Israel e a Acusação de Antissemitismo”, o uso judicial da definição de antissemitismo proposta pela IHRA (International Holocaust Remembrance Alliance) tem servido para silenciar, intimidar e criminalizar críticos do Estado de Israel.
- No caso israelita, trata-se de um lawfare político-religioso, no qual o antissemitismo é desvirtuado para servir como escudo jurídico de um Estado, em vez de proteger uma comunidade vulnerável.
Em nome do combate ao antissemitismo, ativistas, jornalistas e figuras religiosas estão a ser arrastados para os tribunais por ousarem criticar Israel. O novo campo de batalha é o jurídico — e a democracia é a grande lesada.
Há pouco tempo, uma fotografia do jornalista brasileiro Breno Altman, de punho erguido e sorriso discreto, tornou-se viral nas redes. O motivo? Uma queixa-crime por antissemitismo movida contra si por organizações sionistas, após declarações públicas em defesa dos direitos palestinianos. Altman, judeu e ativista de esquerda, é uma das vozes mais conhecidas da dissidência judaica no Brasil. Mas nem isso o protegeu da instrumentalização judicial de uma acusação gravíssima — o ódio racial.
Ao mesmo tempo, o padre Júlio Lancellotti, conhecido pelo trabalho com populações em situação de rua, foi também denunciado por antissemitismo após criticar o governo de Israel. As acusações, formalmente frágeis, ganharam destaque mediático, funcionando como um alerta simbólico: criticar Israel pode custar caro — mesmo quando o autor é uma figura religiosa, respeitada e humanista.
Estes casos são apenas a face visível de uma tendência global inquietante. Como detalha o relatório “Crítica a Israel e a Acusação de Antissemitismo”, o uso judicial da definição de antissemitismo proposta pela IHRA (International Holocaust Remembrance Alliance) tem servido para silenciar, intimidar e criminalizar críticos do Estado de Israel.
A judicialização da crítica política
Na origem deste fenómeno está uma mutação subtil mas perigosa: a migração da crítica política para o campo penal. Sob o argumento de que certas opiniões configuram antissemitismo, cada vez mais activistas e jornalistas são alvo de processos judiciais, que funcionam como forma de intimidação, mesmo quando não chegam à condenação.
Esta estratégia tem um nome nos círculos jurídicos: lawfare — o uso da lei como arma de guerra. No caso israelita, trata-se de um lawfare político-religioso, no qual o antissemitismo é desvirtuado para servir como escudo jurídico de um Estado, em vez de proteger uma comunidade vulnerável.
A Declaração de Jerusalém sobre Antissemitismo (JDA) e o Documento Nexus propõem alternativas claras: distinguir crítica política de ódio racial ou religioso. Mas, como denuncia o relatório, a definição da IHRA, ainda que não vinculativa, tem sido adoptada em várias legislações e regulamentos institucionais — abrindo espaço para abusos.
O resultado é uma inversão inquietante: vozes que se erguem contra crimes de guerra, apartheid ou limpeza étnica são silenciadas, não por argumentos, mas por ações judiciais que lhes imputam crimes de ódio.
O caso Breno Altman: antissionismo, identidade e coerência
O caso de Breno Altman é particularmente paradigmático. Judeu laico, jornalista, fundador do portal Opera Mundi, Altman tem sido uma das figuras mais lúcidas na denúncia da ocupação israelita e da limpeza étnica em Gaza. Tem também sido claro em separar o antissionismo do antissemitismo. E, no entanto, a Federação Israelita do Brasil interpôs contra ele uma queixa por “propagação de discurso antissemita”, com base em declarações públicas e tweets críticos de Israel.
Num dos seus textos de defesa, Altman afirma:
“A luta contra o sionismo não é contra os judeus. É contra um regime de apartheid, étnico, colonialista.”
O caso está em curso. Mas já produziu um efeito político: outros jornalistas hesitam em abordar o tema. A intimidação jurídica funciona, mesmo antes de qualquer sentença. É disso que se trata: fazer da lei um agente de autocensura.
Do altar ao tribunal: o padre que se recusou a calar
Outro caso relevante é o do padre Júlio Lancellotti, em São Paulo. Reconhecido pela defesa dos marginalizados, Lancellotti publicou nas redes sociais mensagens de repúdio ao massacre de civis em Gaza. Poucos dias depois, foi denunciado por “discurso antissemita”. A denúncia provocou reacções indignadas de católicos, judeus progressistas e defensores dos direitos humanos. Afinal, nada nas palavras do padre visava os judeus como povo ou religião. A sua crítica era política, dirigida ao Estado de Israel e à sua acção militar. A denúncia foi arquivada. Mas o susto ficou.
Casos como este são eficazes não por terminarem em condenação, mas por colocarem o acusado sob suspeita pública, por um crime altamente estigmatizante.
Uma nova inquisição? O perigo da banalização
Estes episódios não são apenas alarmes individuais. São sintomas de um sistema que banaliza o antissemitismo ao utilizá-lo como arma política. Esta banalização é perigosa por três razões:
- Destrói a confiança pública nas instituições que deveriam combater o verdadeiro antissemitismo.
- Silencia as vozes morais que denunciam violações do direito internacional.
- Criminaliza a solidariedade com o povo palestiniano, transformando a empatia em delito.
Como se lê no relatório, “usar acusações de antissemitismo para suprimir críticas a Israel desvia a atenção do antissemitismo de boa-fé e inibe o espaço público de debate”.
O contexto português: terreno (ainda) neutro?
Em Portugal, não há registo de casos semelhantes com repercussão mediática. No entanto, o silêncio não deve ser lido como imunidade. As leis contra o discurso de ódio existem e são legítimas. O perigo está na sua má aplicação.
Especialistas alertam para a possibilidade de legislação futura que adopte os critérios da IHRA sem as devidas salvaguardas. Isso abriria a porta a que críticas legítimas às políticas israelitas — em contextos académicos, jornalísticos ou religiosos — possam vir a ser criminalizadas, como já acontece noutros países europeus.
Em defesa do espaço crítico
A crítica ao poder, em particular quando este se exerce com violência e impunidade, não é um crime. É uma obrigação moral. Ao transformar o sistema judicial num campo de batalha ideológico, enfraquece-se o Estado de direito e adensa-se o nevoeiro da repressão simbólica.
Proteger o combate ao antissemitismo é essencial — mas fê-lo exige precisão, rigor e proporcionalidade. O uso leviano da acusação mina a própria luta contra o ódio.
O verdadeiro antissemitismo não se combate criminalizando vozes críticas. Combate-se com educação, memória, justiça — e com a firme defesa da liberdade de expressão, mesmo quando nos incomoda.