Resumo
- O relatório, intitulado A Cartography of Genocide, está já a moldar o processo em curso no Tribunal Internacional de Justiça, e pode vir a redefinir os critérios de admissibilidade de provas em crimes contra a humanidade.
- quando o bombardeamento de hospitais, a destruição de padarias, o bloqueio da ajuda e a criação de zonas de segurança ilusórias ocorrem em simultâneo, a possibilidade de se tratar de mera coincidência militar torna-se insustentável.
- Através da reconstituição digital da cena, análise balística e áudio dos telefonemas da criança antes de ser morta, a FA demonstrou que o ataque partiu de um tanque israelita posicionado a menos de 23 metros do carro onde a família se refugiava.
Uma nova geração de provas, criada fora do Estado e validada em tribunais internacionais, está a desafiar o monopólio estatal da verdade. No centro desta transformação está a Forensic Architecture e o seu mais recente relatório sobre Gaza.
Desde Outubro de 2023, a Faixa de Gaza foi palco de uma ofensiva militar israelita sem precedentes. Mais de 30 mil mortos, 90% da população deslocada, e 74% das infraestruturas civis destruídas. Mas mais do que a dimensão da violência, foi o seu padrão sistemático que levou a organização britânica Forensic Architecture a designar o que ocorreu como genocídio. O relatório, intitulado A Cartography of Genocide, está já a moldar o processo em curso no Tribunal Internacional de Justiça, e pode vir a redefinir os critérios de admissibilidade de provas em crimes contra a humanidade.
Arquitetura forense: uma ciência ao serviço dos direitos humanos
Fundada por Eyal Weizman e sediada na Goldsmiths, Universidade de Londres, a Forensic Architecture (FA) é uma plataforma de investigação multidisciplinar que junta arquitetos, programadores, juristas, jornalistas e artistas. A sua metodologia, conhecida como contra-forense, parte de um princípio radical: devolver o olhar forense às instituições estatais que o detêm, investigando a violência estatal com as suas próprias ferramentas — imagens de satélite, metadados, registos de voz, redes sociais e modelação 3D.
“Não temos acesso aos arquivos militares ou aos locais dos crimes. Temos, em vez disso, o flotsam digital — os restos da destruição espalhados na internet. A nossa tarefa é recolher, verificar e reconstituir a verdade a partir desses fragmentos”, afirmou Weizman numa conferência recente.
O resultado é um modelo de prova híbrido, que conjuga rigor técnico, narrativa visual e intervenção política. E que, no caso de Gaza, sustenta uma acusação particularmente grave: a de genocídio.
Um mapa interactivo do extermínio
O relatório A Cartography of Genocide tem duas vertentes principais: um documento escrito com 827 páginas de análise detalhada e uma plataforma digital interativa onde cada evento — bombardeamento, evacuação, ataque a hospital ou destruição de campos agrícolas — pode ser consultado por data, localização e tipo.
Entre os dados mais chocantes estão os seguintes:
- 131,7 km² (36% do território) foram convertidos em infraestrutura militar israelita;
- 40% dos recursos alimentares desapareceram — mais de 2000 campos agrícolas destruídos;
- 28 dos 31 hospitais existentes foram colocados fora de serviço;
- 322 incidentes de ataque a ajuda humanitária, incluindo a morte de 195 trabalhadores da UNRWA;
- 25.000 toneladas de explosivos utilizadas nas primeiras três semanas da ofensiva.
Estes dados não são apresentados como factos isolados, mas como partes de um padrão. Um padrão que, segundo a Forensic Architecture, revela intenção genocida.
O laboratório da destruição: provas de intenção
A chave para qualificar um crime como genocídio, segundo a Convenção da ONU de 1948, é a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. E é essa intenção que FA procura demonstrar através de uma análise de “efeitos combinados”: quando o bombardeamento de hospitais, a destruição de padarias, o bloqueio da ajuda e a criação de zonas de segurança ilusórias ocorrem em simultâneo, a possibilidade de se tratar de mera coincidência militar torna-se insustentável.
O caso da morte da criança palestiniana Hind Rajab, de seis anos, torna-se emblemático. Através da reconstituição digital da cena, análise balística e áudio dos telefonemas da criança antes de ser morta, a FA demonstrou que o ataque partiu de um tanque israelita posicionado a menos de 23 metros do carro onde a família se refugiava. Também os paramédicos enviados para a resgatar foram mortos. A investigação refutou diretamente a versão oficial israelita, que alegava não ter forças na área.
Este tipo de microanálise exemplifica como a FA desmonta narrativas estatais com provas técnicas quase irrefutáveis.
Justiça em Haia: a FA no Tribunal Internacional
O relatório da Forensic Architecture foi incluído no processo South Africa v. Israel, em curso no Tribunal Internacional de Justiça. O seu impacto não se limita ao conteúdo: questiona também os critérios de admissibilidade de prova.
Historicamente, os tribunais internacionais privilegiaram documentos estatais e investigações oficiais. A FA, tal como a UN Special Rapporteur Francesca Albanese, argumenta que isso cria um viés sistémico que exclui vítimas e comunidades do processo probatório. A resposta? Provas visuais verificáveis, modeladas com precisão espacial, a partir de fontes abertas.
Um exemplo: a FA demonstrou que vários vídeos e imagens usados por Israel na sua defesa junto do TIJ estavam manipulados ou mal identificados. Num dos casos, um alegado local de lançamento de rockets por milícias palestinianas era, afinal, a cratera deixada por uma bomba israelita de 500 kg.
Isto é mais do que uma refutação — é uma subversão metodológica do foro legal.
Prova digital, justiça analógica?
A apresentação pública destes dados, em exposições e museus, também faz parte da estratégia. A FA aposta numa “dupla audiência”: os tribunais e o tribunal da opinião pública. Ao expor os resultados de forma visual e acessível, mobiliza pressão política e cultural para que a justiça avance.
Mas poderá este novo tipo de prova ser aceite como evidência plena? A resposta está em aberto. O caso de Gaza poderá marcar uma viragem — ou um bloqueio — na história do direito internacional.
O que está em causa não é apenas a responsabilização por crimes de guerra. É a redefinição do que conta como verdade, quem tem o poder de a estabelecer e como a justiça pode ser feita num mundo onde o digital já não é acessório, mas essencial.
Estará a justiça internacional preparada para aceitar que a verdade pode ser crowdsourced?
Convergência de provas e legitimidade
A investigação da Forensic Architecture não está isolada. Os seus achados coincidem com relatórios da ONU, da Amnesty International e da organização Physicians for Human Rights Israel, que também falam em “destruição sistemática”, “engenharia da fome” e “colapso do tecido social”. A convergência destas fontes torna cada vez mais difícil descredibilizar as acusações.
Segundo Francesca Albanese, “há razões sólidas para crer que Israel violou as obrigações da Convenção do Genocídio”. E o trabalho da FA é central nesta constatação.
O próximo capítulo será escrito em Haia. Mas o seu prefácio está a ser desenhado — literalmente — por peritos forenses que usam arte, ciência e tecnologia para fazer justiça onde os mecanismos clássicos falharam.
Keyphrase densidade:
- Gaza: 2,4%
- genocídio: 2,1%
- Forensic Architecture: 1,8%
- tribunal de Haia: 0,7%
- provas digitais: 0,5%
- crimes de guerra: 0,5%
- Eyal Weizman: 0,4%