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Resumo

  • O documento de 29 páginas entregue ao Conselho de Direitos Humanos da ONU detalha os mecanismos materiais por detrás da campanha de bombardeamentos, cerco e destruição da Faixa de Gaza.
  • Trata-se de um contrato de mais de mil milhões de dólares para fornecer serviços de cloud computing, inteligência artificial e armazenamento de dados a instituições militares e governamentais israelitas — incluindo o Ministério da Defesa.
  • Documentos internos revelados por funcionários anónimos indicam que o sistema sustenta operações de vigilância e perfilagem digital de cidadãos palestinianos, além de suportar as bases de dados de inteligência.

Reportagem de fundo sobre as corporações implicadas no relatório da ONU e o complexo industrial que sustenta a ocupação israelita


A guerra precisa de armas — mas também de software, dados, logística, investimento, vigilância, construção, telecomunicações, cloud computing. O relatório da relatora especial da ONU, Francesca Albanese, publicado em Março de 2025, vai mais longe do que qualquer outro documento oficial: descreve, em detalhe, uma teia económica que sustenta a campanha militar israelita contra Gaza. Um sistema que mistura empresas de defesa, gigantes tecnológicas e construtoras civis — todas elas, segundo Albanese, beneficiárias ou facilitadoras de um contexto de apartheid e genocídio.

Este artigo mergulha nessa rede: quem são essas empresas? O que fazem em Gaza? Como respondem? E que riscos enfrentam — jurídicos, reputacionais, éticos? A Economia do Genocídio não é um slogan. É uma estrutura — e está documentada.


O relatório: uma acusação frontal e documentada

O documento de 29 páginas entregue ao Conselho de Direitos Humanos da ONU detalha os mecanismos materiais por detrás da campanha de bombardeamentos, cerco e destruição da Faixa de Gaza. Segundo Albanese:

“Um genocídio não se comete apenas com bombas — mas com sistemas de controlo, financiamento e gestão logística que tornam possível o extermínio de uma população indesejada.”

São identificadas cerca de 40 empresas, entre israelitas, norte-americanas e europeias. Muitas são conhecidas do grande público: Amazon, Microsoft, Google, Meta, Elbit Systems, Caterpillar, Palantir Technologies, HP, Motorola Solutions.

Outras, menos mediáticas, operam nos bastidores do fornecimento de dados, componentes electrónicos ou infraestruturas de transporte — essenciais para a logística militar.


Amazon, Microsoft e Google: a cloud da ocupação

Em 2021, as três gigantes tecnológicas assinaram um acordo conjunto com o governo israelita chamado Project Nimbus. Trata-se de um contrato de mais de mil milhões de dólares para fornecer serviços de cloud computing, inteligência artificial e armazenamento de dados a instituições militares e governamentais israelitas — incluindo o Ministério da Defesa.

O contrato é confidencial e exclui cláusulas de “reserva ética”. Documentos internos revelados por funcionários anónimos indicam que o sistema sustenta operações de vigilância e perfilagem digital de cidadãos palestinianos, além de suportar as bases de dados de inteligência.

Funcionários destas empresas lançaram cartas abertas e pedidos de revisão interna — todos ignorados ou reprimidos. Alguns foram despedidos.


Elbit, Caterpillar, Palantir: a engrenagem da ocupação física

  • Elbit Systems, a maior empresa de defesa israelita, fornece drones, sistemas de vigilância por radar, sensores de fronteira e munições. Os seus produtos foram usados em todas as ofensivas em Gaza desde 2008.
  • Caterpillar fabrica os bulldozers blindados D9, usados para demolir casas palestinianas e infraestruturas civis — e que operam com protecção militar directa.
  • Palantir Technologies fornece software de análise preditiva e big data, alimentando sistemas como Gospel e Lavender, implicados na selecção automatizada de alvos humanos.

Todas estas empresas mantêm contratos activos com o exército israelita, e algumas fornecem também forças armadas de países europeus e da NATO.


E o papel da banca?

Os relatórios da BDS (Boycott, Divestment, Sanctions) indicam que grandes bancos — como BlackRock, HSBC, BNP Paribas e Deutsche Bank — possuem participações significativas em empresas listadas por Albanese.

Fundos de pensões públicos e privados estão também expostos. O Fundo de Pensão dos Professores da Califórnia (CalSTRS) e o Fundo Soberano Norueguês investiram, nos últimos anos, em empresas como Elbit, Boeing e Lockheed Martin.

Alguns desses fundos começaram a rever as suas carteiras, sob pressão de campanhas de desinvestimento — mas a maioria mantém-se em silêncio.


O que dizem as empresas?

A resposta padrão é idêntica: “cumprimos a legislação em vigor”, “respeitamos os direitos humanos”, “as nossas tecnologias são de uso dual e não temos controlo sobre as aplicações finais”.

Mas esse argumento começa a ruir. Francesca Albanese propõe uma reformulação do conceito de responsabilidade empresarial, assente em princípios como o “dever de vigilância” e a “cadeia de aprovisionamento responsável”.

Juristas do Centro Europeu de Direitos Constitucionais (ECCHR) afirmam que empresas não podem ignorar o contexto em que operam:

“A neutralidade corporativa é uma ficção. Se uma empresa fornece tecnologia que facilita a opressão, está envolvida — directa ou indirectamente.”


O risco jurídico: cumplicidade em genocídio?

O relatório de Albanese recomenda ao Tribunal Penal Internacional que abra investigações não só aos autores materiais dos ataques, mas aos fornecedores e facilitadores logísticos, tecnológicos e financeiros. Isso inclui empresas que:

  • Prestem apoio directo às forças armadas;
  • Forneçam produtos usados em ataques a civis;
  • Participem em sistemas de vigilância e controlo populacional;
  • Financiem, voluntária ou negligentemente, estruturas que sustentam um regime de apartheid.

Não se trata de um precedente novo: em 2009, empresas petrolíferas foram investigadas por cumplicidade em crimes no Sudão. E em 2020, a Lafarge foi processada por apoiar grupos armados na Síria.


O que significa “economia do genocídio”?

A expressão — usada por Albanese — denuncia um sistema em que a violência estrutural se torna rentável. Em Gaza, os contratos públicos, os investimentos militares e as necessidades de vigilância constante geram lucros para quem fornece ferramentas de repressão.

Não se trata apenas de matar: trata-se de administrar a morte, extrair valor da gestão da ocupação, transformar destruição em negócio.


E Portugal?

Portugal aparece no relatório como Estado membro que integra o sistema de cumplicidade passiva: não adopta medidas de auditoria, nem impõe restrições às empresas com sede ou actividade no país que mantenham laços com Israel.

O silêncio institucional e a ausência de fiscalização fazem de Lisboa um elo invisível — mas não inócuo — dessa rede económica.


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