Partilha

Resumo

  • Mas como se chega ao ponto de um relator especial da ONU ser transformado em alvo de uma ofensiva diplomática e financeira por parte da superpotência que alberga a sede da organização.
  • Nos registos públicos da FARA (Foreign Agents Registration Act), constam pelo menos sete contactos directos com o Departamento de Estado e o Tesouro dos EUA relacionados com a situação em Gaza e o mandato de Francesca Albanese, entre Março e Junho de 2025.
  • Estas corporações foram directamente citadas por Albanese como “beneficiárias ou facilitadoras da economia do genocídio” — e portanto, tinham tudo a ganhar com a neutralização do seu mandato.

Mapeamento dos actores políticos, financeiros e ideológicos por detrás da campanha de sanções dos EUA à relatora da ONU sobre a Palestina


Quando Francesca Albanese qualificou a ofensiva israelita em Gaza como “genocídio” e implicou multinacionais tecnológicas no apoio logístico à ocupação, não foi apenas Israel que se insurgiu. A resposta mais contundente veio dos Estados Unidos, que, em Julho de 2025, impuseram-lhe sanções pessoais e pressionaram publicamente pela sua demissão.

Mas como se chega ao ponto de um relator especial da ONU ser transformado em alvo de uma ofensiva diplomática e financeira por parte da superpotência que alberga a sede da organização? Quem são os actores que influenciam — ou controlam — estas decisões? Este artigo investiga os bastidores da máquina de pressão norte-americana que se moveu contra Francesca Albanese.

Spoiler: não se trata de um gesto isolado, mas do culminar de uma campanha estratégica movida por think tanks, grupos de lobby pró-Israel, fundações privadas e interesses empresariais directamente visados no relatório da relatora.


Os nomes por trás da campanha

Os grupos mais activos na pressão contra Albanese incluem:

  • AIPAC (American Israel Public Affairs Committee): o mais poderoso lobby pró-Israel nos EUA, com acesso directo a congressistas e senadores de ambos os partidos. A organização promoveu dezenas de reuniões privadas em Washington para “alertar” para a “radicalização da ONU”.
  • UN Watch: think tank sediado em Genebra, conhecido por campanhas contra relatores da ONU críticos de Israel. Produziu relatórios “exclusivos” sobre o passado de Albanese, contendo citações manipuladas e associações insinuantes.
  • Foundation for Defense of Democracies (FDD): think tank neoconservador com estreitas ligações ao Pentágono e à indústria da defesa. Argumenta que Albanese “trabalha para legitimar grupos terroristas”.
  • ADL (Anti-Defamation League): com forte presença em campanhas públicas e mediáticas, recorreu à acusação de antissemitismo para deslegitimar a relatora. A ADL contactou directamente responsáveis do Departamento de Estado e do Tesouro para recomendar sanções.

Este ecossistema de pressão actua de forma coordenada, com acções complementares em três frentes: política, mediática e económica.


Registos de lobby: os documentos que ligam os pontos

Nos registos públicos da FARA (Foreign Agents Registration Act), constam pelo menos sete contactos directos com o Departamento de Estado e o Tesouro dos EUA relacionados com a situação em Gaza e o mandato de Francesca Albanese, entre Março e Junho de 2025. Destacam-se:

  • Memorandos enviados pela UN Watch e pela FDD, classificando Albanese como “risco diplomático” e pedindo a sua exclusão das Nações Unidas;
  • Relatórios enviados ao Congresso por representantes da AIPAC sobre “enviesamento crónico” da relatoria sobre a Palestina;
  • Encontros registados entre executivos de empresas visadas no relatório (Amazon, Elbit, Microsoft) e senadores republicanos e democratas.

A pressão não foi apenas contra a relatora, mas também contra a própria ONU. Um dos documentos do FDD recomenda “condicionar o financiamento norte-americano à demissão de Albanese e à reforma do Conselho de Direitos Humanos”.


A ponte entre o sector privado e a política externa

As empresas multinacionais implicadas no relatório — como Microsoft, Amazon e Google — possuem equipas permanentes de relações governamentais em Washington. Essas equipas não actuam isoladamente. Em muitos casos, contratam firmas de lobby externo para proteger os seus interesses em momentos críticos.

Segundo dados da OpenSecrets.org, só em 2024:

  • A Amazon gastou mais de 19 milhões de dólares em lobbying federal;
  • A Microsoft, mais de 13 milhões;
  • A Boeing, cerca de 18 milhões.

Vários contratos de lobbying nesses períodos incluem termos como “relações com organismos internacionais”, “resposta a acusações internacionais” ou “defesa da reputação da empresa no estrangeiro”.

Estas corporações foram directamente citadas por Albanese como “beneficiárias ou facilitadoras da economia do genocídio” — e portanto, tinham tudo a ganhar com a neutralização do seu mandato.


A engrenagem mediática: opinião e influência

O cerco a Albanese foi alimentado por um ciclo mediático hostil, com origem em colunas de opinião e peças encomendadas por entidades ligadas a estes grupos. O Wall Street Journal, o New York Post e a Fox News publicaram artigos a descrever Albanese como “militante mascarada de jurista”, “terrorista legalizada” ou “propagandista do Hamas”.

Muitos destes textos repetem termos usados em documentos da AIPAC ou da FDD, demonstrando uma simbiose entre produção de narrativa estratégica e cobertura mediática. A desinformação — que inclui falsas alegações de negação do Holocausto e manipulações de tweets — tornou-se parte do arsenal.


Uma campanha com objectivos duradouros

Para além de silenciar Francesca Albanese, esta campanha visa:

  • Deslegitimar o sistema de relatores especiais da ONU, classificando-os como “politizados”;
  • Enfraquecer o Conselho de Direitos Humanos, já alvo de críticas sistemáticas por parte dos EUA;
  • Afastar a ONU do Tribunal Penal Internacional, dificultando a colaboração entre instituições;
  • Proteger juridicamente empresas norte-americanas de sanções ou processos por cumplicidade em crimes internacionais.

Como alerta um perito do Middle East Institute, “Albanese é o catalisador de uma guerra maior — a que opõe a legalidade internacional à hegemonia geoestratégica dos EUA e seus aliados”.


Quem financia os think tanks?

Muitos dos grupos citados são financiados por fundações privadas com interesses económicos no Médio Oriente ou no sector de defesa:

  • A FDD é financiada por doadores ligados à indústria armamentista;
  • A UN Watch recebe fundos de grupos empresariais suíços e norte-americanos;
  • A ADL tem parcerias tecnológicas com empresas como Palantir, especializada em vigilância.

Estas interligações tornam opaco o debate público — e confundem análise com propaganda.


O que resta da ONU?

A ofensiva contra Francesca Albanese serve de aviso a futuros relatores. E coloca a ONU perante um dilema existencial: pode continuar a funcionar como guardiã do direito internacional num mundo dominado por lobbies?

A resposta a esta pergunta depende da coragem dos Estados-membros menos poderosos — e da capacidade de jornalistas e cidadãos em expor as engrenagens invisíveis do poder.


Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

You May Also Like

Portugal Pode Ignorar Gaza? A Responsabilidade dos Estados Parte do TPI

Partilha
Partilha Resumo O Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu, em maio de 2025,…

“Ressentimento” ou “protesto”? Quem vota Chega — e porquê

Partilha
O Chega consolidou-se como a terceira força política portuguesa nas legislativas de 2025, alcançando 18% dos votos e presença em todos os círculos eleitorais. Mas quem são, afinal, os eleitores do partido liderado por André Ventura? Votam movidos por ressentimento social e cultural ou por puro protesto contra o sistema político?

O Preço de Dizer a Verdade: Sanções, Silenciamento e a ONU em Risco

Partilha
O que acontece quando uma relatora das Nações Unidas, em pleno exercício do seu mandato, denuncia violações graves do direito internacional e exige consequências concretas para os perpetradores? Se a questão envolve Israel e os Estados Unidos, a resposta pode ser: sanções, ameaças, tentativas de demissão — e um aviso silencioso aos restantes defensores de direitos humanos.