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Resumo

  • O cenário repete-se em zonas de Lisboa (Mouraria, Alfama, Ajuda), do Porto (Bonfim, Massarelos) e de cidades médias como Leiria ou Faro.
  • “É uma forma de esperar que o bairro se valorize”, explica a urbanista Susana Tomás, do Centro de Estudos Urbanos da Universidade de Coimbra.
  •  Com rendas médias a ultrapassar os 800 euros em cidades médias e os 1 500 em Lisboa ou Porto, cada prédio encerrado é uma oportunidade perdida para alojar famílias, jovens, estudantes e idosos.

Em cidades onde a habitação escasseia, há quarteirões inteiros desabitados. Como explicar este absurdo urbano?

No coração das cidades portuguesas, há zonas onde os prédios estão todos ocupados… por silêncio. Bairros inteiros vivem às escuras, com caixas de correio entupidas, estores corridos e fachadas degradadas. Enquanto milhares lutam por um tecto, as casas estão lá — mas vazias, encerradas num impasse de leis, heranças e lucros futuros.

Percorrer o centro histórico de Braga ao final da tarde pode ser um exercício de desconcerto. No Bairro da Estação, mais de metade das portas não têm nome, campainha ou sinal de vida. Muitos edifícios têm janelas emparedadas, outros estão aparentemente intactos mas nunca se vê luz ou movimento.

O cenário repete-se em zonas de Lisboa (Mouraria, Alfama, Ajuda), do Porto (Bonfim, Massarelos) e de cidades médias como Leiria ou Faro. Em zonas com escolas, transportes e comércio, os bairros esvaziam-se — não porque falte procura, mas porque sobra especulação.


Números que não batem certo

Segundo os Censos 2021, há em Portugal 733 000 alojamentos sem residentes habituais. Este número inclui segundas habitações, imóveis em obras, casas de emigrantes, mas também dezenas de milhares de edifícios devolutos ou semi-utilizados, muitas vezes situados em zonas com forte pressão urbanística.

Em Lisboa, um estudo encomendado pela autarquia em 2022 revelou que existiam cerca de 4 200 edifícios com sinais evidentes de desocupação prolongada. No Porto, a Câmara estimava mais de 2 500 imóveis com uso nulo ou marginal, especialmente em zonas de reabilitação urbana.

Contudo, menos de 5 % destes imóveis estão registados como devolutos ou sujeitos a qualquer tipo de intervenção pública. O que falha?


Dinâmicas locais de abandono

A explicação é múltipla. Em muitos casos, trata-se de heranças indivisas — imóveis deixados por familiares sem testamento claro, com dezenas de herdeiros ausentes ou em desacordo. Noutros, são propriedades de empresas-fantasma, veículos de investimento que aguardam valorização do mercado antes de intervir.

Há ainda os proprietários ausentes, frequentemente emigrantes ou residentes no estrangeiro, que não utilizam as casas mas também não as colocam no mercado. E há, claro, o fenómeno da reabilitação estratégica: manter um edifício fechado até que as condições de rentabilidade justifiquem obras ou venda.

“É uma forma de esperar que o bairro se valorize”, explica a urbanista Susana Tomás, do Centro de Estudos Urbanos da Universidade de Coimbra. “Se intervirem cedo, arriscam lucros mais baixos. Ao esperar, ganham. E não pagam quase nada por isso.”


A lei existe — mas não se aplica

As autarquias têm, desde 2006, mecanismos legais para identificar imóveis devolutos, aplicar IMI agravado, avançar com intimações para obras coercivas e, desde 2023, até com arrendamentos forçados. Mas as estruturas técnicas são insuficientes, os processos morosos e as resistências políticas fortes.

“Temos três técnicos para 21 freguesias”, lamenta fonte da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia. “E cada processo de classificação como devoluto pode demorar mais de um ano, com possibilidade de recurso.”

As Juntas de Freguesia, que poderiam ser aliadas neste mapeamento, não têm competências legais para intervir. E as denúncias de moradores muitas vezes caem em saco roto, por falta de mecanismos de resposta ágil.


O impacto na vida urbana

A presença de bairros desabitados tem efeitos profundos: desertificação comercial, insegurança, degradação física dos edifícios, quebra do sentimento de comunidade.

Em Arroios, Lisboa, Rui Santos, dono de uma mercearia há 27 anos, sente a diferença: “A rua era cheia de gente, agora à noite parece uma cidade fantasma. Fechou a padaria, a papelaria, o talho. E os turistas não compensam.”

As casas vazias são, também, um entrave directo ao direito à habitação. Com rendas médias a ultrapassar os 800 euros em cidades médias e os 1 500 em Lisboa ou Porto, cada prédio encerrado é uma oportunidade perdida para alojar famílias, jovens, estudantes e idosos.


Há soluções?

Várias autarquias tentam inverter a tendência. O programa ReViver Porto, criado em 2023, oferece incentivos fiscais e apoio técnico a proprietários que cedam os seus imóveis para arrendamento acessível. Em Lisboa, o Bairro das Colónias está a ser alvo de um plano-piloto de reabilitação cooperativa, envolvendo moradores, técnicos municipais e fundos europeus.

Em paralelo, organizações da sociedade civil como a Habitação Certa e a Associação Inquilinos da Cidade fazem levantamentos participativos para identificar edifícios abandonados, pressionando as câmaras para agir.

Mas o desafio permanece: como desbloquear centenas de milhares de casas presas em impasses legais, interesses financeiros ou pura negligência?


Uma cidade que se recusa a habitar-se

Os bairros fantasma não são ruínas. São potencial habitacional desperdiçado. São o retrato de um país onde a função social da propriedade continua a ser letra morta, e onde o direito à habitação é, para muitos, um exercício de paciência (ou desespero).

O paradoxo mantém-se: há casas sem gente e gente sem casa. Até quando?


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