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Resumo

  • De Varsóvia a Roma, de Budapeste a Haia, as forças populistas, nacionalistas e abertamente reaccionárias estão a transformar a UE num espaço de disputa ideológica feroz.
  • Está no modo como os partidos do centro e da direita tradicional estão a assimilar, sem resistência, a linguagem e os temas da extrema-direita, na ânsia de não perder eleitorado.
  • Além disso, países como a Hungria e a Polónia desafiaram frontalmente os princípios do Estado de direito, controlando os media, capturando os tribunais e restringindo liberdades civis — com reacções tímidas ou tardias de Bruxelas.

A ascensão da extrema-direita e os seus efeitos corrosivos na coesão política do projecto europeu

Há vinte anos, a União Europeia (UE) apresentava-se como um farol de valores: democracia, direitos humanos, solidariedade. Hoje, essas fundações estão sob ataque — não apenas de fora, mas a partir do interior. A extrema-direita está no poder ou em ascensão em vários Estados-membros e, pela primeira vez, o seu impacto ultrapassa o plano nacional: está a reconfigurar o próprio centro de gravidade da política europeia.

De Varsóvia a Roma, de Budapeste a Haia, as forças populistas, nacionalistas e abertamente reaccionárias estão a transformar a UE num espaço de disputa ideológica feroz. A coesão está em risco. O que era um projecto de integração está a tornar-se um campo de batalha.

A geometria variável da extrema-direita

A extrema-direita europeia não é homogénea. Há partidos etno-nacionalistas como o Fidesz (Hungria) ou o PiS (Polónia), formações neofascistas como o Fratelli d’Italia, forças ultracatólicas, eurocépticas, racistas, islamofóbicas e até — paradoxalmente — “libertárias” em costumes.

Apesar das diferenças, partilham um núcleo duro: hostilidade à imigração, ataque ao multiculturalismo, recusa das agendas de género e ambiental, e uma desconfiança profunda em relação às instituições supranacionais.

Em Portugal, o Chega tem replicado esta cartilha com sucesso crescente. Mas é no Parlamento Europeu que estas forças estão agora a ganhar novo fôlego. As eleições europeias de 2024 marcaram uma viragem: pela primeira vez, os grupos da direita radical e extrema-direita conquistaram mais de 25% dos assentos.

Um novo bloco de poder?

Formações como Identidade e Democracia (ID) e Conservadores e Reformistas Europeus (ECR) estão a consolidar alianças que, embora frágeis, ameaçam bloquear legislações fundamentais. Matérias como migrações, clima, direitos LGBTQIA+ ou Estado de direito enfrentam agora uma frente organizada de veto ideológico.

“Há um movimento estratégico para capturar as instituições a partir de dentro”, alerta a eurodeputada Gwendoline Delbos-Corfield. “O objectivo não é destruir a UE, mas transformá-la numa fortaleza identitária ao serviço de elites reaccionárias.”

Um exemplo claro é o Pacto Europeu sobre Migração e Asilo. A versão final, aprovada em 2024, endureceu significativamente as regras de acolhimento, externalizando fronteiras e permitindo detenções administrativas em larga escala. A pressão da extrema-direita foi decisiva.

A retórica que contamina o centro

O perigo maior não reside apenas nos partidos radicais. Está no modo como os partidos do centro e da direita tradicional estão a assimilar, sem resistência, a linguagem e os temas da extrema-direita, na ânsia de não perder eleitorado.

É o que analistas políticos chamam de “direitização do centro”: o recuo em políticas de acolhimento, o endurecimento do discurso sobre segurança e identidade, a recusa em avançar com pactos climáticos ambiciosos.

“A extrema-direita não precisa de vencer eleições para mudar a política europeia. Basta que os outros partidos adoptem os seus temas”, afirma Cas Mudde, politólogo especializado em populismo.

Essa contaminação é visível na Alemanha, onde o CDU/CSU endureceu o discurso migratório para travar o crescimento da AfD; na França, onde Emmanuel Macron avançou com leis securitárias sob pressão da narrativa lepenista; e em Itália, onde Giorgia Meloni governa com apoio da Comissão Europeia, apesar do seu passado pós-fascista.

Direitos em retrocesso

O impacto é palpável: retrocessos nos direitos das mulheres (com restrições ao aborto na Hungria e Polónia), criminalização do activismo ambiental, perseguição a ONG de apoio a migrantes, censura a conteúdos pedagógicos sobre género e diversidade.

Além disso, países como a Hungria e a Polónia desafiaram frontalmente os princípios do Estado de direito, controlando os media, capturando os tribunais e restringindo liberdades civis — com reacções tímidas ou tardias de Bruxelas.

“Há uma erosão deliberada das salvaguardas democráticas, mascarada de soberania nacional”, adverte a investigadora polaca Marta Lempart. “A UE está a falhar em defender os seus próprios tratados.”

O efeito centrífugo

A própria ideia de Europa — como espaço político e civilizacional — está a fragmentar-se. A solidariedade orçamental, o acolhimento de refugiados, a transição ecológica e a resposta comum à crise climática estão bloqueadas por divergências ideológicas profundas.

A extrema-direita promove uma Europa das nações egoístas, onde cada Estado age por conta própria e os laços comuns são meramente instrumentais. É uma visão de “Europa-fortaleza” para os de dentro, e muralha contra os de fora.

Este modelo mina os alicerces da UE: o primado do direito comunitário, a coesão social, a livre circulação e o compromisso com a paz.

Há resistência?

Sim. Há uma nova geração de eurodeputados progressistas, activistas, cidades e movimentos sociais que estão a reagir. O Parlamento Europeu continua a aprovar resoluções contra a discriminação, e o Tribunal de Justiça da UE tem travado abusos pontuais. A sociedade civil mobiliza-se — como demonstrado nas grandes manifestações anti-AfD na Alemanha e nos protestos em defesa da democracia na Polónia e França.

Mas a luta é desigual. A extrema-direita tem financiamento sólido, presença digital maciça e capacidade de influenciar o debate mediático. Para muitos cidadãos desiludidos com a crise social, económica e institucional, os seus discursos oferecem respostas simples para problemas complexos.

O que está em jogo

Não está apenas em causa a orientação política da UE. Está em causa a sua natureza essencial. Continuará a ser um projecto de paz, pluralismo e direitos humanos? Ou será capturada por forças que desprezam esses valores?

Portugal, até agora pouco afectado pelo populismo no governo, não está imune. A presença do Chega no Parlamento Europeu e a aliança tácita com forças extremistas internacionais é um sinal claro de que o combate pela alma da Europa passa também por aqui.

A resposta terá de ser firme, articulada e corajosa. Porque quando a Europa se divide, a democracia enfraquece. E os que mais sofrem são sempre os mesmos: os vulneráveis, os marginalizados, os esquecidos.

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