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Resumo

  • Desde que o Banco Central Europeu (BCE) iniciou o corte gradual das taxas de referência no primeiro semestre de 2024, a Euribor tem vindo a cair.
  • Mas quem detém a chave continua a ser o sistema bancário”, afirma Cláudia Figueiredo, analista financeira e autora de estudos sobre crédito e exclusão.
  • E com a nova corrida ao crédito, estão a conseguir vender produtos financeiros agregados com margens mais altas — enquanto os consumidores focam toda a sua atenção na prestação mensal.

A narrativa dominante é simples: as taxas de juro estão a descer, logo todos ganham — sobretudo quem quer comprar casa. Mas a realidade do mercado imobiliário português em 2025 é mais ambígua. Enquanto milhares de famílias continuam excluídas da habitação própria, há outros actores a lucrar, e muito, com este novo ciclo. Basta seguir o dinheiro.

Desde que o Banco Central Europeu (BCE) iniciou o corte gradual das taxas de referência no primeiro semestre de 2024, a Euribor tem vindo a cair. Com isso, a Taxa Anual Efetiva Global (TAEG) desceu, e os bancos recuperaram o apetite pelo crédito à habitação. O resultado? Um mercado em ebulição — mas não necessariamente mais justo ou acessível.

O que dizem os números

Em junho de 2025, a média da TAEG para novos contratos fixou-se nos 3,7%, contra os 5,2% de meados de 2023. No mesmo período, o número de novos empréstimos à habitação aumentou 26%. Parece uma boa notícia, mas um olhar mais atento revela distorções estruturais.

Os bancos voltaram a dominar o jogo. Em vez de reduzirem as margens de lucro com a descida das taxas, muitos aumentaram os spreads ou reforçaram os encargos associados. Segundo o último relatório do Banco de Portugal, mais de 70% dos novos contratos incluem seguros obrigatórios, comissões iniciais elevadas ou produtos cruzados (como cartões de crédito e pacotes de fidelização).

“A queda das taxas abriu uma porta. Mas quem detém a chave continua a ser o sistema bancário”, afirma Cláudia Figueiredo, analista financeira e autora de estudos sobre crédito e exclusão. “Há uma narrativa de alívio que serve para estimular o consumo, mas a estrutura dos contratos continua altamente desigual.”

Bancos em alta, famílias em risco

As instituições financeiras recuperaram margem de manobra. E com a nova corrida ao crédito, estão a conseguir vender produtos financeiros agregados com margens mais altas — enquanto os consumidores focam toda a sua atenção na prestação mensal.

Além disso, a pressão sobre os clientes voltou. Em vez de facilitarem a contratação de crédito, alguns bancos aumentaram os critérios de entrada: exigem maiores capitais próprios, seguros mais abrangentes e, em alguns casos, garantias adicionais.

É o paradoxo da habitação em 2025: o dinheiro ficou mais barato, mas a casa ficou mais cara — e o crédito, mais complexo.

Os promotores sabem que é agora ou nunca

A descida das taxas não beneficia apenas os bancos. Os promotores imobiliários voltaram a lançar empreendimentos com confiança. Em zonas urbanas como Matosinhos, Almada, Loures ou Oeiras, a construção disparou nos últimos 12 meses — mas quase sempre em segmentos médios ou de luxo.

“A mensagem é clara: se o juro desce, o preço sobe”, afirma Pedro Almeida, urbanista e consultor independente. “A lógica é capturar o poder de compra que ressurgiu com a descida da Euribor.”

E isso está a resultar. Os dados da Confederação da Construção revelam que mais de 60% dos imóveis vendidos em planta nos últimos seis meses foram adquiridos por investidores — nacionais ou estrangeiros. Estes compradores não precisam de crédito, mas beneficiam da valorização acelerada causada pela entrada massiva de quem depende de financiamento.

Fundos e investidores: os verdadeiros vencedores

Mas há outro grupo que emerge silenciosamente como o grande ganhador: os fundos de investimento e family offices que, desde 2020, vêm consolidando carteiras de ativos habitacionais em Portugal. Com a descida das taxas, estes actores ganham em dois tabuleiros:

Valorizção dos ativos — A subida dos preços impulsionada pelo crédito aquece o mercado e infla os portfólios imobiliários.

Acesso a financiamento barato — Com mais liquidez e melhores condições de crédito empresarial, estes grupos financiam operações de compra e construção com custos mínimos.

“Os fundos têm hoje mais poder do que nunca. Jogam com tempo, dinheiro e escala. E a descida dos juros apenas reforça a vantagem estrutural que já tinham”, comenta Sofia Andrade, investigadora em políticas urbanas na Universidade de Coimbra.

E as famílias?

O cidadão comum entra neste jogo com desvantagem. Apesar das taxas mais baixas, os salários continuam estagnados, os preços das casas seguem a subir e o peso do crédito no rendimento disponível é ainda maior do que em 2021, no pico anterior.

As simulações feitas por vários portais de literacia financeira mostram que uma família média, com rendimentos de 2.200 euros líquidos, só consegue hoje financiar casas até 180 mil euros, quando o preço médio de um T2 em Lisboa já supera os 320 mil euros.

Além disso, os contratos continuam a ser armadilhas legais para quem não lê as letras pequenas. “A maioria dos compradores só olha para a prestação. Esquece o custo total, o seguro, o impacto de uma subida futura da taxa variável”, alerta Ana Costa, jurista especializada em direito bancário.

Então, quem está a ganhar?

Os dados falam por si:

O lucro líquido dos cinco maiores bancos portugueses aumentou 17% no primeiro semestre de 2025.

O volume de construção licenciada cresceu 22%, sobretudo em segmentos médio-alto.

Os fundos imobiliários internacionais registaram uma valorização média de 9,4% nas suas carteiras em Portugal.

Enquanto isso, a taxa de esforço das famílias para aquisição de habitação subiu para 41% em média — o nível mais alto da última década.

A ilusão do “crédito barato”

O que está a acontecer é uma transferência silenciosa de riqueza: a descida das taxas de juro, em vez de democratizar o acesso à habitação, reforçou a concentração de propriedade e lucro nos sectores mais poderosos.

É o que alguns economistas chamam de “financiarização da habitação” — um processo em que a casa deixa de ser um bem de uso e passa a ser tratada como ativo financeiro, rendível e especulável. Neste processo, as famílias tornam-se reféns do sistema, mesmo quando acham que estão a fazer um bom negócio.

O que fazer?

A resposta não está apenas nas decisões individuais de compra, mas em medidas estruturais que travem a especulação, protejam o crédito e promovam modelos alternativos — como o arrendamento acessível, as cooperativas ou os Community Land Trusts.

Sem intervenção pública, o mercado continuará a beneficiar os mesmos de sempre. E a ilusão de que todos ganham com a descida dos juros servirá apenas para legitimar mais um ciclo de exclusão.

Porque no final, a taxa pode descer… mas a desigualdade continua a subir.

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