Resumo
- E mesmo nos imóveis classificados como devolutos, a penalização multiplica um valor já distorcido, o que esvazia a função dissuasora da medida.
- Em teoria, seria uma forma de pressionar os proprietários a colocarem os imóveis no mercado de arrendamento ou a avançarem com obras.
- Desde que não se solicite a reavaliação do VPT — e desde que não sejam feitas obras sujeitas a licença camarária — o valor fiscal permanece inalterado durante décadas.
Especulação imobiliária contorna penalização do IMI agravado com valores patrimoniais desactualizados e registos artificiais
Em teoria, a lei portuguesa permite castigar os proprietários que mantêm casas devolutas. Na prática, muitos imóveis de luxo continuam isentos de penalizações significativas, graças a um truque legal: têm um valor patrimonial tributário (VPT) muito abaixo do real. Resultado? Pagam menos IMI do que um T1 habitado na periferia — e escapam incólumes à crise habitacional que ajudam a agravar.
“Na conservatória, vale 45 mil euros. No mercado, está à venda por 1,2 milhões.” A frase é de um avaliador imobiliário com mais de duas décadas de experiência em Lisboa. Refere-se a um prédio devoluto na zona do Príncipe Real, comprado por um fundo de investimento há cinco anos e mantido fechado desde então. “Paga 200 euros por ano de IMI. Se estivesse habitado, talvez pagasse o dobro. Se fosse habitado e com VPT actualizado, pagaria dez vezes mais.”
O caso não é excecional. Pelo contrário, é regra. Em Portugal, o valor patrimonial tributário (VPT) — base de cálculo do IMI — está frequentemente desfasado da realidade do mercado. O sistema de actualização automática previsto na lei não tem sido aplicado com eficácia desde a crise financeira de 2008. E mesmo nos imóveis classificados como devolutos, a penalização multiplica um valor já distorcido, o que esvazia a função dissuasora da medida.
IMI agravado: letra morta?
A lei prevê que os imóveis considerados devolutos há mais de um ano possam ser alvo de uma majoração do IMI até 12 vezes a taxa normal. Em teoria, seria uma forma de pressionar os proprietários a colocarem os imóveis no mercado de arrendamento ou a avançarem com obras. Mas essa ferramenta tem sido ineficaz.
Segundo dados da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), em 2023 foram identificados pouco mais de 3 000 imóveis devolutos em todo o país com IMI agravado. Em contraste, os Censos de 2021 indicavam mais de 730 mil casas sem ocupação permanente.
Pior: mesmo quando aplicável, o agravamento incide sobre valores patrimoniais irrisórios. Em bairros históricos de Lisboa ou do Porto, é comum encontrar prédios com VPTs de 30 ou 40 mil euros, enquanto o seu valor de mercado ultrapassa os sete dígitos.
Como se contorna a penalização?
Em entrevista ao nosso jornal, o fiscalista José Miguel Baptista explica: “O truque está na inércia do proprietário. Desde que não se solicite a reavaliação do VPT — e desde que não sejam feitas obras sujeitas a licença camarária — o valor fiscal permanece inalterado durante décadas.”
O resultado é um incentivo perverso: compensa manter o imóvel devoluto, fechado e sem melhorias, porque a carga fiscal é mínima. Só a iniciativa do Estado — através da reavaliação oficiosa — poderia corrigir esse desequilíbrio. Mas tal iniciativa é rara, morosa e frequentemente contestada em tribunal.
“O sistema protege os inactivos”, resume o jurista. “É uma máquina desenhada para não funcionar.”
Avaliações desactualizadas, registos omissos
Um estudo publicado em Junho pelo Observatório da Habitação Urbana e Direito à Cidade mostrou que, em Lisboa, mais de 60 % dos imóveis classificados como devolutos têm um VPT inferior a 60 mil euros. No Porto, a percentagem ronda os 70 %. Isso traduz-se em IMIs anuais de menos de 400 euros — mesmo com agravamento máximo.
Alguns proprietários vão ainda mais longe: inscrevem os imóveis como em ruína, o que isenta totalmente o pagamento de IMI. Embora seja ilegal fazê-lo sem justificação técnica, muitos municípios não têm capacidade de fiscalização.
“Há casos em que basta retirar o contador da luz e deixar cair parte do estuque para passar como ‘em ruínas’”, denuncia Mariana Seixas, arquiteta e membro da associação Cidades para Viver. “É um jogo de aparência — e o Estado continua a perder.”
Quem beneficia?
Os principais beneficiários deste défice estrutural de justiça fiscal são fundos de investimento, empresas de mediação imobiliária, e grandes proprietários urbanos, com carteiras de imóveis que permanecem devolutos à espera da valorização do mercado.
Em zonas turísticas, como Alfama ou Cedofeita, os imóveis permanecem vazios durante anos, apenas intervencionados quando se vislumbra rentabilidade em arrendamento de luxo ou venda a compradores estrangeiros.
“O IMI agravado é para os pequenos. Os grandes sabem como contornar”, diz um técnico municipal do Porto, sob anonimato. “É um sistema com duas velocidades: pesado para os pobres, invisível para os ricos.”
Omissão ou complacência?
Vários especialistas defendem a necessidade de reformar profundamente a avaliação cadastral, de forma a refletir o valor real dos imóveis — especialmente os que estão desocupados ou subutilizados. Propõem também mecanismos automáticos de reavaliação periódica, com base em transações de mercado.
No entanto, há resistência política significativa, sobretudo por parte de partidos e autarquias com receio de hostilizar o eleitorado proprietário. “Tocar no IMI é quase tabu em Portugal”, diz a economista Rita Nogueira, investigadora no ISEG. “Mesmo que a justiça fiscal exija, falta coragem para mexer.”
E agora?
A crise da habitação exige medidas corajosas e eficazes. Penalizar imóveis devolutos é uma dessas medidas — mas de pouco serve agravar impostos sobre valores fictícios. Enquanto o sistema de avaliação fiscal for deliberadamente cego à realidade, o IMI agravado continuará a ser uma miragem.
A pergunta impõe-se: quem tem medo de avaliar os imóveis como deve ser? Até lá, o Estado continuará a fingir que pune, os especuladores a fingir que cumprem — e milhares de casas a fingir que não estão vazias.