Resumo
- Sem correspondentes internacionais no terreno — devido ao bloqueio de Israel ao acesso de jornalistas estrangeiros —, o peso de informar recai inteiramente sobre os ombros exaustos de repórteres locais, que trabalham sem capacete, sem seguro, sem direito à pausa.
- Os que continuam a reportar, mesmo depois de verem colegas morrer, de perderem casa, e de saberem que são o próximo alvo.
- A ausência da imprensa internacional agrava a pressão sobre os repórteres locais, que são os únicos a testemunhar o que acontece no terreno.
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Uma mão agarra o microfone. A outra segura o filho ao colo. Ao fundo, o som dos drones mistura-se com gritos e sirenes. Esta é a redação em Gaza: não tem paredes, não tem eletricidade, não tem segurança. Mas tem verdade. E é isso que se tenta contar, todos os dias, sob bombardeamentos, fome e apagões.
Desde o início da ofensiva israelita, os jornalistas palestinianos tornaram-se a única ponte entre Gaza e o resto do mundo. Sem correspondentes internacionais no terreno — devido ao bloqueio de Israel ao acesso de jornalistas estrangeiros —, o peso de informar recai inteiramente sobre os ombros exaustos de repórteres locais, que trabalham sem capacete, sem seguro, sem direito à pausa.
Esta reportagem mergulha no quotidiano desses profissionais. Os que continuam a reportar, mesmo depois de verem colegas morrer, de perderem casa, e de saberem que são o próximo alvo.
Sem abrigo. Sem rede. Com coragem.
“Deixei de dormir com a minha mulher e os meus filhos. Se me matarem, que seja só a mim.” A voz é de Walid Abu Hassan, jornalista freelancer de 28 anos, que colabora com agências internacionais. Mudou de casa seis vezes desde Outubro de 2023. O único padrão? Nenhuma fica mais de 48 horas no mesmo lugar.
Walid grava entrevistas com um telemóvel antigo, carrega a bateria num hospital parcialmente destruído e envia os vídeos quando há sinal — o que pode significar subir ao telhado sob risco de ataque.
“Não há colete que nos proteja. O colete diz ‘PRESS’, e para muitos isso é uma mira.”
Como Walid, dezenas de jornalistas continuam a operar com meios mínimos: cadernos de papel, lanternas de mão, modems portáteis que falham constantemente. Sem gasolina, muitos caminham quilómetros para entrevistar sobreviventes.
E ainda assim, continuam.
As redações que se tornaram tendas
A maioria dos edifícios de media em Gaza foi destruída. A sede da Al Jazeera em Gaza City foi atingida logo nos primeiros dias da ofensiva. O mesmo aconteceu com os escritórios da Palestine TV, Wattan TV, e outros meios locais.
“Trabalhamos agora em tendas, garagens, por vezes em abrigos subterrâneos, onde partilhamos espaço com famílias deslocadas”, conta Hiba Abdelrahman, produtora e repórter. “O som de fundo não é o teclado — são os bebés a chorar.”
Hiba perdeu o irmão, também jornalista. Não parou de trabalhar. “Se não contarmos o que se passa, quem o fará? Se calarmos a nossa dor, ela morre connosco.”
Autocensura? Só para proteger os vivos
Israel não só bombardeia, como controla as comunicações. Há bloqueios de rede, censura de transmissões e vigilância digital. Muitos jornalistas em Gaza acreditam estar a ser monitorizados. Alguns receberam ameaças anónimas após publicarem imagens de ataques a civis.
“A autocensura tornou-se instinto de sobrevivência — não para evitar processos, mas para evitar mísseis”, diz uma jornalista que pediu anonimato. “Há histórias que guardamos até sabermos se conseguimos sobreviver mais um dia.”
Os jornalistas vivem com a angústia de publicar algo que, por mostrar demasiado, acabe por atrair um ataque. “Publicar é arriscar. Calar é morrer por dentro.”
A ausência dos outros: onde estão os media internacionais?
Desde Outubro de 2023, Israel não autorizou a entrada de jornalistas estrangeiros em Gaza, salvo exceções extremamente controladas, integradas em visitas militares. A ausência da imprensa internacional agrava a pressão sobre os repórteres locais, que são os únicos a testemunhar o que acontece no terreno.
ONGs como a Reporters Without Borders e o CPJ têm exigido acesso livre e imediato de jornalistas estrangeiros, mas sem sucesso. O bloqueio de informação é quase total.
“Israel quer controlar não só o território, mas também a narrativa”, afirma Sherif Mansour, do CPJ. “Ao impedir jornalistas estrangeiros de entrarem, assegura que só os olhos locais — frágeis, isolados, vulneráveis — tentam mostrar o que está a acontecer.”
O que significa ser jornalista em Gaza hoje?
Ser jornalista em Gaza não é uma profissão. É uma sentença de risco. Uma missão de testemunho. Um grito que resiste entre os escombros.
Dormir em abrigos, com o tripé da câmara como almofada.
Gravar entrevistas com pessoas a enterrar familiares.
Fazer diretos enquanto o bairro é destruído.
É contar o indizível, sabendo que o mundo poderá não querer ouvir.
Pergunta-se: vale a pena?
“Sim.” — respondem todos os que foram entrevistados para esta peça.
“Porque quando as bombas caem, há uma verdade que precisa de se erguer. Porque somos nós — e apenas nós — que podemos dar nomes às crianças mortas. Contar como viviam. Mostrar quem as matou.”
E talvez seja por isso que continuam a trabalhar. Porque, no fim, o jornalismo em Gaza não é só informação. É memória. É resistência. É humanidade.
📍 Baseado em testemunhos diretos de jornalistas em Gaza, comunicações com repórteres de Al Jazeera, Reuters, bem como relatórios da RSF, CPJ e entrevistas com membros de ONGs presentes na Cisjordânia. Identidades foram protegidas por razões de segurança.