Partilha

Resumo

  • O relatório de direitos humanos de 2025, publicado pelo Departamento de Estado dos EUA sob a presidência de Donald Trump, está a gerar alarme não apenas pelo seu conteúdo ideológico, mas pelas suas implicações práticas nos processos de asilo e proteção internacional.
  • Organizações jurídicas e humanitárias denunciam que o documento — profundamente alterado na sua estrutura, fontes e linguagem — está já a ser usado em tribunais para negar proteção a requerentes de asilo.
  • O juiz reconheceu a sua história como “credível”, mas considerou — com base no relatório do Departamento de Estado — que “não existe uma prática sistemática de perseguição a jornalistas no Egipto”.

O relatório de direitos humanos de 2025, publicado pelo Departamento de Estado dos EUA sob a presidência de Donald Trump, está a gerar alarme não apenas pelo seu conteúdo ideológico, mas pelas suas implicações práticas nos processos de asilo e proteção internacional. Organizações jurídicas e humanitárias denunciam que o documento — profundamente alterado na sua estrutura, fontes e linguagem — está já a ser usado em tribunais para negar proteção a requerentes de asilo. Em vez de servir como escudo, o relatório passou a funcionar como arma.


De referência a obstáculo

Desde os anos 80, os Country Reports on Human Rights Practices foram um pilar nos processos de imigração e asilo nos EUA. Advogados, juízes e agentes de imigração recorriam regularmente ao relatório para avaliar se uma pessoa tinha motivo legítimo para temer perseguição no seu país de origem.

“Antes, o relatório ajudava-nos a provar que os nossos clientes enfrentavam riscos reais. Agora é usado contra eles”, afirma Mariana Pérez, advogada especializada em asilo em Los Angeles. O seu espanto surgiu ao ver que, num recente processo de um jovem salvadorenho, o procurador citou o relatório de 2025 para argumentar que “não existem abusos significativos dos direitos humanos em El Salvador”.

Nada poderia estar mais longe da realidade, segundo a própria versão de 2024 do mesmo relatório, onde se documentavam “execuções extrajudiciais, desaparecimentos forçados, tortura e impunidade endémica”. Em 2025, tudo isso desapareceu — substituído por uma linha lacónica: “Não houve relatos credíveis de abusos significativos dos direitos humanos”.


Um estudo de caso: El Salvador

A mudança no tratamento dado a El Salvador é ilustrativa. Durante a Administração Biden, os relatórios reconheciam o endurecimento autoritário do governo de Nayib Bukele, com vigilância extrajudicial, repressão de dissidentes e detenções em massa. ONGs como a Human Rights Watch e a WOLA (Washington Office on Latin America) alertaram para a escalada autoritária e os riscos para jornalistas, ativistas e minorias.

Mas o relatório de 2025, alinhado com a visão geopolítica da Administração Trump — que elogia Bukele como “um exemplo de combate ao crime” — eliminou quase todas as referências negativas. A consequência é concreta: tribunais de imigração passaram a descredibilizar alegações de perseguição com base na nova versão do relatório.

“As autoridades norte-americanas estão a fingir que os países são seguros para justificar deportações.”
Claudia Gonzalez, da American Immigration Council


Asilo político em risco

A manipulação não afeta apenas o caso de El Salvador. Países como Honduras, Guatemala, Egipto ou Arábia Saudita viram as suas secções abreviadas ou suavizadas. Ao mesmo tempo, os pedidos de asilo oriundos desses países enfrentam agora mais rejeições com base em “ausência de risco” — uma falsa ausência, fabricada pela nova orientação ideológica do relatório.

Advogados de imigração relatam já dezenas de casos em que o relatório de 2025 foi citado pelo governo como base para indeferir pedidos de asilo. Em muitos casos, os requerentes tinham documentação independente a corroborar perseguições sofridas — mas os tribunais deram maior peso ao relatório oficial do Departamento de Estado, mesmo quando este ignora ou contradiz essa evidência.

“Os relatórios foram instrumentalizados para justificar políticas de exclusão e deportação.”
Rachel Schmidtke, Refugees International


Uma questão de vida ou morte

A alteração do relatório não é apenas um ato de censura institucional. Tem efeitos devastadores na vida de milhares de pessoas.

Ahmed*, um jornalista egípcio que fugiu do Cairo após ter sido detido e agredido pela polícia, viu o seu pedido de asilo recusado em julho de 2025. O juiz reconheceu a sua história como “credível”, mas considerou — com base no relatório do Departamento de Estado — que “não existe uma prática sistemática de perseguição a jornalistas no Egipto”.

“O relatório transformou-se num álibi para negar proteção a quem mais precisa.”
Alexandra Barreto, International Refugee Assistance Project

(*nome alterado para proteção da identidade)


O impacto na jurisprudência e no sistema internacional

Para além do efeito imediato sobre os pedidos de asilo, juristas alertam para um impacto mais estrutural: a erosão da confiança na jurisprudência internacional. O relatório dos EUA é frequentemente citado em decisões judiciais noutros países — nomeadamente no Reino Unido, Canadá, Austrália e Alemanha. Se esta fonte perde objetividade, os sistemas de proteção globais ficam comprometidos.

Em Washington, um grupo de juristas do Georgetown Human Rights Institute apelou ao Congresso para restaurar a independência do Bureau of Democracy, Human Rights and Labor (DRL), que tradicionalmente liderava a redação dos relatórios. A proposta, porém, está parada — travada por senadores alinhados com o Project 2025.


Um desvio do Direito Internacional

A alteração do relatório norte-americano representa, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), uma violação indireta das obrigações assumidas pelos EUA enquanto signatários da Convenção de 1951 sobre o Estatuto dos Refugiados. A manipulação de provas, ainda que administrativa, compromete o princípio do non-refoulement — a proibição de devolver alguém a um país onde esteja em risco.

“Estamos perante uma forma institucionalizada de negar refúgio a quem foge da perseguição”, afirma Volker Türk, Alto-Comissário da ONU para os Direitos Humanos. “Trata-se de uma adulteração da verdade, com consequências humanas profundas.”


O paradoxo moral

Enquanto a Administração Trump afirma combater a imigração ilegal, reescreve documentos para negar proteção até aos que seguem todos os canais legais. O paradoxo é cruel: os EUA estão a criminalizar a verdade e a legalizar a rejeição.

Num mundo em que a perseguição política e a violência de Estado estão a aumentar, os refugiados precisam mais do que nunca de garantias, não de ficções burocráticas.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

You May Also Like

Caminhar para a Morte com um Saco de Farinha: Ecos de Gaza em Primeira Pessoa

Partilha
Partilha Resumo Vozes de mães, de crianças, de médicos, de idosos, de…

Estado de Direito Submerso: Quando a Lei do Mar é Ignorada em Terra

Partilha
Apesar das leis sólidas que protegem o litoral português, a sua aplicação desvanece-se perante os interesses do turismo de luxo. O caso Tróia–Melides é sintomático de uma erosão jurídica tão alarmante quanto a ecológica.

O Efeito Colateral da Crítica: Como a Imprensa Ajudou o Chega

Partilha
Partilha Resumo Cada debate televisivo acalorado, cada título de jornal com frases…