Resumo
- São líderes partidários, ex-militantes neonazis, youtubers, pseudointelectuais e figuras das forças de segurança que, de forma concertada ou paralela, alimentam o medo do Islão como estratégia de mobilização política e social.
- Apesar de não apresentar dados que sustentem as suas afirmações, Ventura insiste que “Portugal está a ser transformado à semelhança do que aconteceu na França ou na Bélgica” — uma comparação refutada por todos os indicadores demográficos e de segurança disponíveis.
- Entre 2021 e 2025, registaram-se várias ameaças a centros islâmicos, insultos públicos a mulheres com hijab e tentativas de vandalismo em mesquitas em Loures, Setúbal….
Nos bastidores da retórica alarmista sobre a “islamização” de Portugal estão nomes e rostos bem definidos. São líderes partidários, ex-militantes neonazis, youtubers, pseudointelectuais e figuras das forças de segurança que, de forma concertada ou paralela, alimentam o medo do Islão como estratégia de mobilização política e social. Esta galeria de influências não é homogénea, mas converge numa missão: convencer os portugueses de que estão sob ameaça existencial.
André Ventura: o catalisador
O rosto mais visível da cruzada contra o Islão em Portugal é, indiscutivelmente, André Ventura. Fundador e líder do Chega, Ventura construiu a sua ascensão política em torno de três eixos: segurança, imigração e identidade nacional. E em todos eles, o Islão é o alvo privilegiado.
Nos debates parlamentares, nos palanques ou nos vídeos que partilha nas redes sociais, Ventura recorre a expressões como “sharia”, “bairros islâmicos radicais” ou “substituição cultural” — conceitos importados do léxico da extrema-direita europeia.
“Ele sabe que esta narrativa cola em públicos que se sentem inseguros num mundo em mudança”, afirma o politólogo Rui Tavares. “É uma apropriação sofisticada do medo, com um verniz institucional.”
Apesar de não apresentar dados que sustentem as suas afirmações, Ventura insiste que “Portugal está a ser transformado à semelhança do que aconteceu na França ou na Bélgica” — uma comparação refutada por todos os indicadores demográficos e de segurança disponíveis.
Mário Machado: o elo radical
A narrativa do medo não surgiu com o Chega. Um dos seus precursores foi Mário Machado, antigo líder da Frente Nacional e ex-membro da organização neonazi Hammerskins Portugal. Condenado por crimes de ódio, posse de arma ilegal e discriminação racial, Machado regressou à esfera pública nos últimos anos como “analista” e ativista de causas “identitárias”.
Hoje apresenta-se como fundador do movimento Nova Ordem Social e mantém uma presença digital intensa, onde divulga vídeos e textos em que liga o Islão à criminalidade, terrorismo e decadência moral.
Em 2023, lançou um canal no Telegram com mais de 15 mil seguidores, onde partilha conteúdos conspiratórios e planos para “resistência cultural”. Embora fora do sistema partidário, o seu discurso ecoa — e, por vezes, alimenta — o da extrema-direita parlamentar.
“Machado funciona como o radical externo que permite ao Chega parecer moderado por comparação”, diz o sociólogo Luís Silva, especialista em extremismos. “É uma dança de espelhos.”
Influencers e plataformas digitais
A difusão da narrativa da islamização passa também por actores não convencionais: youtubers, podcasters e perfis no X (antigo Twitter), Instagram ou Rumble que produzem conteúdos anti-islâmicos mascarados de jornalismo de “investigação”.
Destacam-se figuras como Carlos Dias, ex-polícia e criador do canal “Sentinela Lusitano”, com mais de 100 mil seguidores, onde partilha vídeos com títulos como “Portugal sob ameaça islâmica?” ou “Eles já controlam bairros inteiros”.
Estes vídeos têm milhares de visualizações e são muitas vezes impulsionados por algoritmos que recomendam conteúdo semelhante, criando bolhas de reforço cognitivo.
“Estamos perante uma indústria amadora de desinformação ideológica”, alerta Clara Sousa, da equipa de fact-checking do Polígrafo. “Misturam estatísticas descontextualizadas com imagens fora de contexto e promovem um discurso de medo constante.”
Financiamento e redes internacionais
Embora ainda pouco investigadas, as ligações entre os actores portugueses e redes internacionais de extrema-direita começam a ser visíveis. Mário Machado já participou em conferências organizadas por grupos identitários franceses e italianos. Ventura foi citado em publicações ligadas ao Vox espanhol e ao partido Reconquête, de Éric Zemmour.
Estes cruzamentos ideológicos traduzem-se em estratégias comuns: oposição à imigração, defesa da “civilização cristã europeia” e denúncia do multiculturalismo como ameaça.
Em 2024, o Observatório Europeu para os Discursos de Ódio alertou para “uma crescente cooperação informal entre influencers nacionalistas portugueses e redes internacionais de desinformação islamofóbica”.
Consequências reais
Esta arquitectura discursiva não é inofensiva. Tem impacto concreto. Entre 2021 e 2025, registaram-se várias ameaças a centros islâmicos, insultos públicos a mulheres com hijab e tentativas de vandalismo em mesquitas em Loures, Setúbal e Braga.
“Estes discursos não ficam na internet. Produzem agressões reais, exclusões reais”, afirma o imam Mohamed Al-Bachir, da Mesquita Central de Lisboa. “Vivemos sob tensão constante.”
Em 2025, após um vídeo viral em que André Ventura dizia que “não queremos madrassas em Portugal”, duas professoras muçulmanas foram ameaçadas à porta de uma escola pública em Almada.
A máquina do medo está montada
A narrativa da islamização é alimentada por um ecossistema de protagonistas que se reforçam mutuamente: políticos que lançam a mensagem, radicais que a amplificam, plataformas digitais que a distribuem e audiências desinformadas que a consomem.
Portugal ainda está longe da radicalização institucional que se vive noutros países europeus — mas o caminho está a ser pavimentado. Ignorar os seus rostos seria um erro fatal.