Resumo
- Classificou o ataque como “assassinato seletivo” e o ponto culminante de uma “campanha de alvos sistemática” contra os seus profissionais desde outubro de 2023.
- A estação, apoiada por organizações como o Comité para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) e relatores da ONU, lembrou que rotular jornalistas como “terroristas” é uma tática recorrente de Israel — e que nunca foram apresentadas provas credíveis.
- A proximidade temporal entre o ataque e a declaração de Benjamin Netanyahu — horas antes, anunciando que permitiria mais jornalistas estrangeiros em Gaza — acentuou suspeitas de contradição ou cinismo político.
Na noite abafada de 10 de agosto de 2025, um clarão rasgou o céu sobre a Cidade de Gaza. Eram quase 23h50 quando um ataque aéreo israelita atingiu a tenda de imprensa montada à entrada principal do Hospital Al-Shifa — um espaço reconhecido como refúgio para jornalistas em zona de guerra. Entre os mortos estava Anas Al-Sharif, 28 anos, correspondente da Al Jazeera Arabic, conhecido pela coragem e pela voz firme na denúncia da fome e da destruição no território. Com ele morreram Mohammed Qreiqeh, Ibrahim Zaher, Mohammed Noufal e um motorista da equipa. Pelo menos outros dois repórteres ficaram feridos.
Minutos antes, Al-Sharif publicara no X: “Urgente: bombardeamento israelita intenso e concentrado com ‘cinturões de fogo’ atinge as áreas leste e sul de Gaza.” As suas últimas palavras profissionais foram um alerta. O que se seguiu foi silêncio — e duas narrativas incompatíveis.
Duas versões para um ataque
As Forças de Defesa de Israel (IDF) assumiram a autoria. Alegaram que o alvo era “o chefe de uma célula terrorista do Hamas” que “se fazia passar por jornalista” e que coordenava ataques contra civis e militares israelitas. Segundo a IDF, documentos apreendidos em Gaza — nunca divulgados para verificação independente — confirmariam a acusação.
A Al Jazeera refutou de imediato. Classificou o ataque como “assassinato seletivo” e o ponto culminante de uma “campanha de alvos sistemática” contra os seus profissionais desde outubro de 2023. A estação, apoiada por organizações como o Comité para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) e relatores da ONU, lembrou que rotular jornalistas como “terroristas” é uma tática recorrente de Israel — e que nunca foram apresentadas provas credíveis.
A proximidade temporal entre o ataque e a declaração de Benjamin Netanyahu — horas antes, anunciando que permitiria mais jornalistas estrangeiros em Gaza — acentuou suspeitas de contradição ou cinismo político.
A campanha que antecedeu a morte
Meses antes, Anas Al-Sharif já vivia sob mira. Em julho, o porta-voz em árabe da IDF, Avichay Adraee, lançara uma ofensiva digital contra ele. Acusou-o falsamente de integrar as Brigadas Al-Qassam desde 2013, desvalorizou a sua reportagem sobre a fome como “drama encenado” e apelidou-o de “porta-voz do terrorismo intelectual”. O CPJ alertou: estas acusações criavam “consentimento para matar” o jornalista.
As ameaças eram também privadas e diretas: mensagens no WhatsApp, geolocalização revelada, ordens para abandonar o norte de Gaza. Em dezembro de 2023, um bombardeamento israelita destruiu a casa da sua família no campo de refugiados de Jabalia, matando o pai, Jamal, demasiado debilitado para fugir.
Mesmo assim, Anas não recuou. Em julho de 2025 disse ao CPJ: “Vivo com o sentimento de que posso ser bombardeado e martirizado a qualquer momento.” Em abril, deixou agendada uma mensagem póstuma: “Se estas palavras vos chegarem, saibam que Israel conseguiu matar-me e silenciar a minha voz… Não se esqueçam de Gaza.”
A lei e o estatuto de jornalista
O Direito Internacional Humanitário é claro: jornalistas são civis e gozam de proteção especial (Artigo 79 do Protocolo Adicional I às Convenções de Genebra). Só perdem esse estatuto se participarem diretamente nas hostilidades — algo que exige prova inequívoca, ato concreto e ligação causal ao dano militar.
No caso de Al-Sharif, Israel não apresentou provas verificáveis. O padrão histórico pesa: acusações semelhantes contra outros jornalistas mortos em Gaza foram repetidamente desmontadas por organizações como a Repórteres Sem Fronteiras e as Nações Unidas. A escolha de atacar uma tenda identificada como de imprensa levanta sérias questões de proporcionalidade e precaução, pilares do DIH.
Gaza: o conflito mais letal para jornalistas
Entre outubro de 2023 e agosto de 2025, morreram pelo menos 189 jornalistas, segundo a Federação Internacional de Jornalistas — quase todos palestinianos. Autoridades de Gaza falam em 232. Mais de 80 foram presos, dezenas ficaram feridos e 183 perderam casas. Nunca houve nada assim: nem nas duas Guerras Mundiais, nem no Vietname, nem no Afeganistão.
Metade das mortes ocorreu em residências, muitas vezes com famílias inteiras, e há registos de ataques a jornalistas com coletes identificados, a tendas de imprensa e a escritórios. O bloqueio israelita à entrada de repórteres estrangeiros amplifica o risco: os poucos jornalistas locais que restam tornam-se os únicos olhos do mundo — e, por isso, alvos maiores.
Impunidade e respostas tímidas
A ONU, o CPJ e a IFJ condenaram o ataque. Governos aliados de Israel expressaram preocupação, mas evitaram romper alianças estratégicas. No Conselho de Segurança, os EUA vetaram ações vinculativas.
O precedente de Shireen Abu Akleh, morta em 2022 por fogo israelita sem que houvesse qualquer responsabilização, reforça o padrão de impunidade. Desde 2001, 20 jornalistas foram mortos por militares israelitas sem que alguém fosse acusado.
Caminhos para a responsabilização
O Tribunal Penal Internacional investiga crimes na Palestina e pode enquadrar o assassinato de jornalistas como crime de guerra. A jurisdição universal é outra via, ainda que politicamente difícil. Organismos da ONU poderiam criar comissões de inquérito específicas. E os Estados signatários das Convenções de Genebra têm obrigação legal de “assegurar o respeito” pelo DIH, não apenas de o invocar.
Epílogo: a voz que não se cala
O caso de Anas Al-Sharif expõe a erosão das normas internacionais que deveriam proteger civis e jornalistas. O silêncio ou a hesitação da comunidade internacional são, na prática, permissões tácitas para que se repitam crimes.
O último pedido de Anas — “Não se esqueçam de Gaza” — não é apenas memória. É um teste à nossa capacidade de proteger quem arrisca a vida para contar a verdade.