Resumo
- Gaza, agosto de 2025 — Numa Gaza devastada, cercada e esfomeada, onde mais de dois milhões de pessoas dependem da ajuda externa para sobreviver, os centros de distribuição alimentar geridos pela Gaza Humanitarian Foundation (GHF) — entidade apoiada por Israel e pelos Estados Unidos — tornaram-se epicentros de violência, trauma e morte.
- A estrutura da GHF cria uma hierarquia artificial entre os que conseguem ser admitidos e os que são rejeitados — não por critério de necessidade, mas por controlo político e segurança militar.
- a suspensão do modelo GHF, a reposição de um sistema civil descentralizado, a retirada imediata de forças armadas dos centros e a criação de um mecanismo internacional de responsabilização.
Gaza, agosto de 2025 — Numa Gaza devastada, cercada e esfomeada, onde mais de dois milhões de pessoas dependem da ajuda externa para sobreviver, os centros de distribuição alimentar geridos pela Gaza Humanitarian Foundation (GHF) — entidade apoiada por Israel e pelos Estados Unidos — tornaram-se epicentros de violência, trauma e morte. Longe de serem lugares de socorro, são descritos como “armadilhas institucionalizadas”, onde se morre por tentar obter um saco de farinha.
O mais recente relatório da Médicos Sem Fronteiras (MSF), “This Is Not Aid. This Is Orchestrated Killing”, revela um quadro devastador: civis baleados à queima-roupa, crianças feridas, corpos sufocados em multidões descontroladas e um sistema desenhado não para alimentar, mas para oprimir.
❶ Balas em vez de pão
Entre 7 de junho e 24 de julho de 2025, 1.380 pessoas feridas foram tratadas apenas nos dois centros da MSF em Rafah. Destas, 174 tinham ferimentos por bala — 71 eram crianças, 25 com menos de 15 anos. 28 chegaram já sem vida.
Não se trata de incidentes isolados. Os testemunhos e os relatórios médicos convergem: os pontos de distribuição operam sob controlo militar israelita, segurança armada privada dos Estados Unidos, drones, helicópteros Apache e, por vezes, tanques.
“Estamos a tratar ferimentos de guerra em pessoas que não estavam em combate, mas numa fila para comer”, relata um cirurgião da MSF. “Há tiros dirigidos ao peito, à cabeça. Não é dispersão — são execuções extrajudiciais.”
❷ O colapso da ajuda civil
A GHF foi criada após o desmantelamento forçado do sistema de distribuição da ONU em Gaza, até então responsável por mais de 400 centros comunitários de ajuda alimentar. Sob pressão política e bloqueios logísticos, o modelo foi substituído por apenas quatro megacentros militarizados, com acesso controlado, regras opacas e logística gerida por contractors estrangeiros.
As multidões desesperadas caminham quilómetros por dias sob o calor, sem garantia de que conseguirão entrar. Muitas acabam por cair em tumultos ou por ser repelidas com gás pimenta e bastões eléctricos. Vários testemunhos descrevem o uso de spray pimenta nas zonas genitais, cães a morder crianças, e situações em que os corpos sufocados ficam estendidos no chão durante horas.
❸ A fome como arma
A MSF não hesita: o actual modelo institucionaliza a fome e transforma a ajuda em instrumento de punição colectiva. Os alimentos são secos, em quantidades irrisórias e, muitas vezes, impossíveis de preparar sem acesso a água potável, gás ou electricidade. Mesmo assim, os pacotes são disputados como última esperança.
“A comida é usada como recompensa para os submissos e como castigo para os que protestam”, lê-se no relatório. A estrutura da GHF cria uma hierarquia artificial entre os que conseguem ser admitidos e os que são rejeitados — não por critério de necessidade, mas por controlo político e segurança militar.
Segundo psicólogos da MSF, este sistema está a provocar uma epidemia silenciosa de trauma colectivo: depressão, dissociação, tentativas de suicídio, especialmente entre mães, adolescentes e profissionais de saúde.
❹ Silêncio cúmplice e contas por fazer
As autoridades responsáveis pela gestão da GHF mantêm-se inacessíveis. Os mecanismos de monitorização são inexistentes. Os contractors armados que operam nos centros — provenientes de empresas norte-americanas privadas — não respondem perante o direito humanitário nem às autoridades palestinianas.
Enquanto isso, nenhuma das grandes potências financiadoras reconheceu formalmente as denúncias da MSF. Nem Israel, nem os EUA. A ONU permanece marginalizada, com acesso condicionado e logística bloqueada.
O relatório propõe seis medidas urgentes, entre elas: a suspensão do modelo GHF, a reposição de um sistema civil descentralizado, a retirada imediata de forças armadas dos centros e a criação de um mecanismo internacional de responsabilização.
❺ “Não é ajuda. É assassinato.”
A frase que dá título ao relatório resume o sentimento dominante entre médicos, pacientes e familiares: “This Is Not Aid. This Is Orchestrated Killing.” — “Isto não é ajuda. É matança orquestrada.”
A denúncia de MSF é clara, factual e profundamente perturbadora. Revela uma política deliberada de gestão da crise humanitária como campo de controlo populacional — onde a distribuição de alimentos, em vez de aliviar a fome, aprofunda a repressão.Num tempo em que as palavras “ajuda humanitária” são repetidas em fóruns internacionais e comunicados oficiais, o que se passa em Gaza representa o colapso dessa promessa. E exige resposta — não amanhã, mas hoje.