Resumo
- Análise crítica do papel da imprensa internacional na construção das versões sobre o conflito em Gaza — e de como os termos usados influenciam quem é visto como vítima, agressor ou ameaça.
- Com o evoluir da campanha militar, e o aumento exponencial de vítimas civis palestinianas, alguns órgãos ajustaram a linguagem.
- A guerra mediática passa, assim, por quem controla a difusão, a visibilidade e a linguagem do conflito.
Análise crítica do papel da imprensa internacional na construção das versões sobre o conflito em Gaza — e de como os termos usados influenciam quem é visto como vítima, agressor ou ameaça
Há imagens que não precisam de legenda. Um hospital destruído. Crianças entre escombros. Colunas de fumo a rasgar o céu. E, no entanto, o modo como essas imagens são enquadradas, descritas e contextualizadas transforma por completo o seu significado.
Na guerra de Gaza, que Francesca Albanese descreveu como genocídio deliberado, há outra batalha em curso: a batalha pelas palavras. É ela que define o campo moral da opinião pública, condiciona a acção política e até justifica — ou neutraliza — crimes.
O uso de termos como terrorismo, antissemitismo, direito à defesa, genocídio, apartheid ou ataques cirúrgicos não é neutro. É disputa. É arma. E, tantas vezes, é manipulação.
Quando os termos decidem o lado da história
Logo após os ataques de 7 de Outubro de 2023, a maioria dos media internacionais adoptou, sem reservas, a terminologia do governo israelita: massacre terrorista, ato de barbárie, guerra justa. A palavra genocídio só começou a surgir meses depois — e quase sempre atribuída a grupos militantes ou ONGs radicais.
A cobertura inicial evitava referir contexto: ocupação, bloqueio, colonatos, violações anteriores do direito internacional. O framing dominante era binário: Israel defende-se, o Hamas ataca.
“A escolha das palavras não é inocente. É editorial. E, muitas vezes, é cúmplice”, observa o investigador Antoine Haslé, da FAIR (Fairness & Accuracy In Reporting).
Com o evoluir da campanha militar, e o aumento exponencial de vítimas civis palestinianas, alguns órgãos ajustaram a linguagem. Mas mesmo assim, a simetria falsa persiste: como se se tratasse de dois exércitos equivalentes, e não de uma potência ocupante contra uma população sitiada.
Quem diz “genocídio” — e quem o omite
Francesca Albanese foi uma das primeiras figuras institucionais a usar o termo genocídio de forma categórica, sustentada em provas e jurisprudência. O impacto foi imediato — e o backlash, brutal.
- Vários media omitiram o conteúdo do relatório, focando-se apenas na “polémica”.
- Outros sugeriram que a relatora “perdeu credibilidade” ou “excedeu o seu mandato”.
- Comentadores insinuaram ligações ideológicas ou preconceitos anti-israelitas.
Em contraste, os termos “antissemitismo”, “relativismo moral” e “propaganda do Hamas” tornaram-se frequentes em peças sobre a ONU e os seus representantes. A inversão narrativa é clara: quem denuncia passa a ser denunciado.
O papel dos editores — e dos algoritmos
A pressão não é apenas política. É também económica e digital.
- Nos EUA e na Europa, várias redacções admitem evitar certos termos por medo de perda de financiamento, cancelamento de parcerias ou represálias institucionais.
- Plataformas como Meta e X (ex-Twitter) têm sido acusadas de censura selectiva de conteúdos sobre Gaza, suprimindo vídeos, suspendendo contas e eliminando palavras-chave.
- Algoritmos de recomendação promovem visões hegemónicas, marginalizando vozes críticas — muitas vezes oriundas do Sul Global.
A guerra mediática passa, assim, por quem controla a difusão, a visibilidade e a linguagem do conflito.
A pressão sobre jornalistas: silenciamento e autocensura
Vários repórteres de campo, especialmente em Gaza, enfrentam riscos extremos: prisões, ameaças, assassinatos. Até Julho de 2025, mais de 100 jornalistas palestinianos foram mortos desde o início da ofensiva israelita — o maior número registado em qualquer conflito desde a II Guerra Mundial.
Nos países ocidentais, a pressão assume outras formas:
- Jornalistas despedidos por partilharem publicações solidárias com civis palestinianos;
- Editorialistas censurados por referirem o termo apartheid;
- Correspondentes instruídos a “não personalizar o sofrimento” de um dos lados.
“Vivemos uma época em que a empatia selectiva molda a narrativa. Há mortos que valem manchetes, e outros que valem rodapés”, lamenta a jornalista egípcia Noura Elmasry, ex-correspondente da Al Jazeera.
A manipulação como estratégia militar
A guerra narrativa não é colateral. É estratégica. Israel investe há décadas em hasbara — termo hebraico que designa esforços organizados de diplomacia pública, relações mediáticas e gestão da imagem internacional.
- Vídeos pré-editados distribuídos a jornalistas internacionais;
- Briefings controlados nas zonas fronteiriças;
- Parcerias com agências de comunicação globais.
Ao mesmo tempo, vozes palestinianas são sistematicamente deslegitimadas: acusadas de propaganda, instrumentalização do sofrimento, ligações terroristas. O objectivo é claro: colonizar o vocabulário, condicionar a percepção.
E a imprensa portuguesa?
Em Portugal, a cobertura tem oscilado entre o factualismo neutro e a reprodução acrítica de fontes internacionais. Poucos media traduziram integralmente o relatório de Albanese. Raríssimos fizeram entrevistas com palestinianos no terreno. Termos como genocídio ou apartheid são evitados — mesmo quando usados por organismos da ONU.
A narrativa dominante mantém-se prudente. Mas prudência, neste caso, é também uma escolha política.
A urgência de novas linguagens
Se queremos uma imprensa que sirva o interesse público — e não o poder — é necessário:
- Reavaliar os manuais de estilo e os critérios editoriais sobre cobertura de conflitos;
- Garantir pluralidade de fontes — incluindo vozes palestinianas e do Sul Global;
- Promover literacia mediática sobre framing, linguagem e desinformação;
- Exigir transparência sobre relações comerciais e pressões institucionais que afectem a linha editorial.
Porque quem controla a narrativa não só molda a opinião pública — molda o próprio destino dos povos.
A verdade ainda importa?
A pergunta final é desconcertante — mas necessária.
Se a verdade factual pode ser distorcida por linguagem enviesada, se a empatia é manipulável, se os media abdicam do seu papel crítico — que democracia estamos a construir?
Francesca Albanese fez o que se espera de uma jurista internacional: analisou factos, comparou normas, escreveu com clareza. Foi tratada como agente político. Não por erro, mas porque a verdade que trouxe desafia demasiados interesses.
A imprensa ainda tem o poder de reequilibrar a balança. Mas para isso, tem de abandonar a zona de conforto e regressar ao essencial: dar nome ao que acontece. Sem medo. Sem manipulação. Com verdade.