Resumo
- Num momento de profunda fratura no sistema internacional, o Grupo de Haia e a Cúpula de Bogotá emergem como sinais de uma viragem radical na diplomacia multilateral e na aplicação do direito internacional humanitário.
- Fundado em janeiro de 2025, o Grupo de Haia é um consórcio crescente de países do Sul Global – e não só – que se propõe a fazer aquilo que as grandes potências e instituições tradicionais se têm revelado incapazes de garantir.
- acabar com a ocupação e apoiar a autodeterminação do povo palestiniano, garantir a aplicação das ordens da CIJ e do TPI – inclusive os mandados de captura emitidos contra líderes israelitas como Benjamin Netanyahu – e impedir o fornecimento de armamento que possa ser usado em crimes de guerra ou genocídio.
Num momento de profunda fratura no sistema internacional, o Grupo de Haia e a Cúpula de Bogotá emergem como sinais de uma viragem radical na diplomacia multilateral e na aplicação do direito internacional humanitário. Fundado em janeiro de 2025, o Grupo de Haia é um consórcio crescente de países do Sul Global – e não só – que se propõe a fazer aquilo que as grandes potências e instituições tradicionais se têm revelado incapazes de garantir: o cumprimento efetivo das decisões do Tribunal Penal Internacional (TPI) e da Corte Internacional de Justiça (CIJ), em particular no que diz respeito à guerra em Gaza e à ocupação israelita dos Territórios Palestinianos Ocupados.
Uma resposta coordenada à paralisia global
A génese do Grupo de Haia tem origem numa perceção crescente de falência dos mecanismos clássicos de responsabilização internacional. A impunidade prolongada de Israel face a sucessivas violações do direito internacional motivou a criação de uma coligação de estados dispostos a ir além da retórica diplomática. Entre os fundadores destacam-se países como a África do Sul, Malásia, Colômbia, Cuba, Namíbia e Senegal, aos quais se juntaram posteriormente Brasil, Espanha, Indonésia, Argélia e Catar.
O propósito do grupo é claro: acabar com a ocupação e apoiar a autodeterminação do povo palestiniano, garantir a aplicação das ordens da CIJ e do TPI – inclusive os mandados de captura emitidos contra líderes israelitas como Benjamin Netanyahu – e impedir o fornecimento de armamento que possa ser usado em crimes de guerra ou genocídio.
Cúpula de Bogotá: “o fim da era da impunidade”?
É neste quadro que se realiza a Cúpula de Emergência do Grupo de Haia, em Bogotá, a 15 e 16 de julho de 2025. Convocada conjuntamente pela Colômbia e pela África do Sul, esta cimeira representa, segundo muitos observadores, “a ação multilateral mais ambiciosa desde o início do genocídio em Gaza”, reunindo 30 estados de quatro continentes com um objectivo unificador: transformar condenações morais em ações concretas.
Não foi uma reunião meramente simbólica. A cúpula aprovou seis medidas coordenadas, legalmente vinculativas a nível nacional e internacional. O foco está em sanções concretas contra Israel, pressões diplomáticas e uma nova forma de diplomacia Sul-Sul, ancorada na legalidade internacional.
As seis medidas da Cúpula
Proibição de fornecimento de material militar a Israel – Inclui armas, munições, combustível de uso militar e equipamentos de uso duplo. Trata-se de uma tentativa direta de enfraquecer a máquina de guerra israelita. Restrição de acesso marítimo – Navios com armamento destinado a Israel ficam proibidos de atracar em portos dos países signatários. Responsabilização dos países de bandeira – Qualquer embarcação com bandeira de um estado-membro que transporte armamento para Israel poderá ser sancionada e desbandeirada. Revisão de contratos e apoios financeiros – Impede o uso de fundos públicos para financiar projetos ou empresas que colaborem com a ocupação ou o regime de apartheid em território palestiniano. Processos judiciais e responsabilização internacional – Inclui apoio a investigações nacionais e internacionais sobre crimes cometidos, com base no princípio da jurisdição universal. Apoio explícito às decisões da CIJ e TPI – Obriga os países membros a darem seguimento interno às decisões já emitidas pelas instâncias judiciais internacionais.
Um desafio aberto à geopolítica dominante
Ao contrário de iniciativas anteriores, esta ação do Grupo de Haia não se limita ao apelo humanitário. Apoiada por líderes como Cyril Ramaphosa, Gustavo Petro e Anwar Ibrahim, a coligação assume uma posição frontal contra a narrativa dominante nos organismos internacionais, historicamente condicionados pelos interesses estratégicos dos EUA e da União Europeia.
A presença de figuras como a relatora especial da ONU, Francesca Albanese, alvo de sanções por parte dos Estados Unidos, acentuou a determinação do grupo em reafirmar a legalidade internacional como eixo da justiça global. A secretária-geral da Amnistia Internacional, Agnès Callamard, qualificou as sanções como “ataques transparentes à justiça internacional”.
Implicações e possíveis repercussões
O Grupo de Haia representa mais do que um esforço coordenado em defesa da Palestina. É uma tentativa de reconfigurar a ordem internacional a partir de uma perspetiva multipolar, inclusiva e legalista. As suas ações confrontam diretamente o cinismo diplomático que tem permitido que o direito internacional seja aplicado seletivamente.
Será esta a alvorada de um novo bloco global com peso jurídico e moral? Ou um esforço que cairá no vazio por falta de adesão dos grandes poderes? Estas são as perguntas que a comunidade internacional não pode mais ignorar.
O certo é que a Cúpula de Bogotá, com a sua linguagem incisiva e propostas robustas, marcou um ponto de rutura. Para os seus signatários, o tempo da complacência terminou.
Palavras-chave: Grupo de Haia, Cúpula de Bogotá, Palestina, direito internacional, Tribunal Penal Internacional, Corte Internacional de Justiça, sanções a Israel, Gaza, Sul Global, multilateralismo, justiça internacional.