Partilha

Resumo

  • Quando o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu, a 21 de Novembro de 2024, mandados de captura para Benjamin Netanyahu e Yoav Gallant, o debate jurídico sobre a sangrenta ofensiva israelita em Gaza ganhou novo fôlego.
  • A Pre-Trial Chamber I rejeitou os argumentos de Israel sobre falta de jurisdição e avançou com as ordens de detenção.
  • Ao privar 2,2 milhões de pessoas de luz, água e pão, Israel poderá ter ultrapassado ambas as balizas — argumenta a professora Ana Mendes Dias, especialista na Universidade de Coimbra, durante o podcast que acompanha este artigo.

Quando o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu, a 21 de Novembro de 2024, mandados de captura para Benjamin Netanyahu e Yoav Gallant, o debate jurídico sobre a sangrenta ofensiva israelita em Gaza ganhou novo fôlego. Pela primeira vez um primeiro-ministro de um Estado aliado do Ocidente enfrenta acusações formais de matar civis por fome e ataques desproporcionados. Do outro lado, líderes do Hamas também são visados por crimes contra a humanidade. Quem decide, afinal, se o horror configura “simples” crime de guerra ou o patamar supremo de genocídio?

Mandados históricos, dúvidas persistentes

A Pre-Trial Chamber I rejeitou os argumentos de Israel sobre falta de jurisdição e avançou com as ordens de detenção. Para o procurador Karim Khan, “há base razoável” para responsabilizar politicamente Top e Ministro da Defesa por fome como método de guerra, perseguição e extermínio. O mandado para Mohammed Deif, comandante das Brigadas al-Qassam, reforça a leitura de que os crimes se estendem aos dois beligerantes.

Hospitais sob fogo: crime de extermínio?

Peritos da Comissão de Inquérito da ONU concluíram em Outubro de 2024 que ataques deliberados a unidades pediátricas “podem constituir crime contra a humanidade de extermínio”. A Human Rights Watch foi mais longe: documentou mortes de pacientes quando soldados ocuparam hospitais, negaram água e electricidade e forçaram evacuações de doentes em estado crítico. Será possível conciliar o direito de se defender com a destruição do último refúgio para bebés prematuros?

Distinção e proporcionalidade em colapso

O princípio da distinção obriga cada parte a separar civis de combatentes; a proporcionalidade proíbe danos civis “excessivos” face à vantagem militar concreta. Ao privar 2,2 milhões de pessoas de luz, água e pão, Israel poderá ter ultrapassado ambas as balizas — argumenta a professora Ana Mendes Dias, especialista na Universidade de Coimbra, durante o podcast que acompanha este artigo. “Quando todo o território é declarado alvo potencial, a distinção evapora-se”, afirma.

Genocídio: conceito elástico ou fronteira clara?

Para tipificar genocídio, o Estatuto de Roma exige intenção específica de destruir um grupo. Mas o processo aberto por Pretória contra Telavive no Tribunal Internacional de Justiça sustenta-se em padrões de conduta: cerco alimentar, massacre de menores e linguagem desumanizante por autoridades israelitas. A relatora especial Francesca Albanese denuncia “uma economia de genocídio”, acusando Estados e corporações de alimentar o conflito.

Que indícios extra faltam para transformar a suspeita em juízo definitivo?

Vozes na mesa-redonda

  • Miguel de Serpa Soares, assessor especial do TPI: “Temos evidência de ordens directas para cortar água a hospitais; isso ultrapassa o limiar do mero excesso bélico.”
  • Rita Ventura, jurista portuguesa na Cruz Vermelha: “Mesmo sem intenção genocida provada, o catálogo de crimes de guerra já justificaria sanções robustas.”
  • Balkees Jarrah, directora jurídica da HRW: “Provar genocídio não é impossível; o Rwanda mostrou que o discurso político pode ser elemento de intenção.”

Fact-box

Norma violadaElemento de provaFonte
Art. 8(2)(b)(xxv) – Fome como arma66 crianças mortas por desnutrição; bloqueio de corredores de ajudaTPI, HRW, OCHA
Art. 7(1)(b) – Extermínio57 000 civis mortos; hospitais visadosMoH Gaza, ONU, HRW
Art. 6(c) – Genocídio (matança)Ordens de evacuação total, linguagem de “animais humanos”ICJ, discursos governamentais

(Versão ampliada na infografia interactiva)

Responsabilizar quem? E quando?

Mesmo com o mandado, Netanyahu pode governar enquanto não atravessar uma fronteira amiga do TPI. Portugal reconhece a jurisdição do tribunal; um desembarque em Lisboa implicaria detenção imediata. A União Europeia debate se suspende o Acordo de Associação — afinal, violação sistemática do princípio de distinção activa cláusula de direitos humanos.

Quantas vidas faltam perder até o direito deixar de ser letra morta?

Do tribunal à trincheira diplomática

A procuradora adjunta Leila Morais lembra que “o TPI julga indivíduos, não povos” — precaução contra a acusação de parcialidade anti-israelita. Mas admite que a ausência de execução fragiliza a autoridade da corte. Sem cooperação estatal nem pressão económica, um mandado vale menos que uma barricada. Neste dilema, o termo genocídio tornou-se arma de retórica e de justiça pendente.

Conclusão

Quer se trate de crimes de guerra ou de genocídio, o consenso entre os juristas é claro: o padrão de ataques a civis viola as colunas mestras do direito humanitário. Resta saber se a comunidade internacional terá vontade política para transformar paper law em justiça tangível.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

You May Also Like

Explosão hospital Gaza: quem atacou o Al‑Ahli?

Partilha
Partilha Resumo A Associated Press, a CNN e o Washington Post analisaram…

Reagir ou Ignorar? Como os Media Alimentam (ou Enfraquecem) a Propaganda do Chega

Partilha
Partilha Resumo Na era digital, onde o choque e a reacção valem…

Gaza à Venda: Como o Plano GREAT Trust Transforma Deslocamento Forçado em Negócio Bilionário

Partilha
Partilha Resumo Sob a retórica da inovação tecnológica e da prosperidade, ergue-se…

A Desigualdade de Género nos Salários Ainda Persiste – e Está nos Dados

Partilha
Portugal gosta de se ver como um país de avanços na igualdade de género. Mas quando se olha para os números, a retórica esbarra na realidade. Em 2024, as mulheres continuavam a ganhar, em média, menos do que os homens — mesmo quando tinham as mesmas qualificações, a mesma experiência e, por vezes, até mais responsabilidades.