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Resumo

  • Do outro lado do muro, em Jerusalém, o Knesset celebrava uma vitória ideológica — a aprovação, por larga maioria, de uma moção que “reconhece o direito soberano e inalienável do Estado de Israel sobre toda a Judeia e Samaria”.
  • A fronteira entre simbolismo e acto político está cada vez mais esbatida — sobretudo quando, sobre o terreno, as palavras se tornam máquinas de despojo.
  • É uma codificação formal da ocupação, uma declaração de intenção de que a Cisjordânia será integrada no sistema jurídico israelita, mas apenas em benefício de parte da população”, explica Dr.

Em Julho de 2025, o parlamento israelita aprovou um voto simbólico pela anexação da Cisjordânia. Um gesto sem efeito vinculativo — diz-se. Mas será esse o último prego no caixão da solução de dois Estados?

Ramallah acordou em silêncio naquela manhã de verão abrasador. As ruas estavam calmas, mas não por serenidade: era o peso da resignação. Do outro lado do muro, em Jerusalém, o Knesset celebrava uma vitória ideológica — a aprovação, por larga maioria, de uma moção que “reconhece o direito soberano e inalienável do Estado de Israel sobre toda a Judeia e Samaria”. Noutros termos: a Cisjordânia.

O voto foi imediatamente classificado como “não vinculativo”, um estratagema sem consequências legais. Mas ninguém na Palestina, nem no sistema diplomático europeu, acreditou nessa ficção. A fronteira entre simbolismo e acto político está cada vez mais esbatida — sobretudo quando, sobre o terreno, as palavras se tornam máquinas de despojo.

Da ocupação à anexação: mudança semântica ou legalidade paralela?

O Direito Internacional é claro: um Estado não pode anexar território conquistado pela força. O artigo 49.º da Quarta Convenção de Genebra proíbe a transferência da sua população civil para territórios ocupados. É exactamente isso que Israel faz desde 1967, sustentam diversas organizações como a B’Tselem ou a Human Rights Watch, que classificam a situação como apartheid.

“Este voto no Knesset não é apenas um gesto. É uma codificação formal da ocupação, uma declaração de intenção de que a Cisjordânia será integrada no sistema jurídico israelita, mas apenas em benefício de parte da população”, explica Dr. Ana Filipa Morais, jurista e investigadora em Direito Internacional na Universidade Nova de Lisboa.

Do ponto de vista jurídico, a moção não altera, em si, o estatuto dos territórios. Mas politicamente, a mensagem é inequívoca: a era das negociações morreu. “A solução dos dois Estados está em coma há anos. Agora, Israel desligou-lhe a máquina”, afirma um diplomata europeu, sob anonimato, em entrevista à reportagem.

“Não há ninguém para nos defender”

Na aldeia de Burin, nos arredores de Nablus, Hassan al-Tamimi, de 47 anos, mostra os restos queimados do seu olival. “Vieram à noite, colonos com tochas e metralhadoras. Disseram que isto era agora terra de Israel”, conta, enquanto aponta para a estrada onde antes passavam patrulhas da ONU. “Agora, só passam blindados israelitas.”

A intensificação da violência dos colonos coincide com o crescimento dos assentamentos: só em 2024, mais de 18 mil novas unidades habitacionais foram aprovadas na Cisjordânia. Segundo dados da Peace Now, já são cerca de 750 mil os israelitas que vivem em território ocupado — uma presença que, na prática, torna impossível qualquer viabilidade territorial de um futuro Estado palestiniano.

Os palestinianos sentem-se abandonados. Mahmoud Abbas, envelhecido e isolado, mal comentou o voto do Knesset. Em Gaza, o Hamas apelou à resistência armada. E nas ruas da Cisjordânia, a resignação mistura-se com uma raiva surda.

“Não há ninguém para nos defender”, repete Hassan, olhando o céu límpido como se esperasse resposta divina.

A Europa, a ONU, e o impasse da indignação

Na sede da ONU, António Guterres classificou o voto como “um golpe à ordem internacional”. A União Europeia emitiu uma nota conjunta: “O acto simbólico compromete a possibilidade de uma solução negociada.” Mas não passou disso — uma nota.

Rita Marques, analista do Instituto Português de Relações Internacionais, é peremptória: “A comunidade internacional está refém da sua própria impotência. A UE não tem mecanismos coercivos reais sobre Israel. E os Estados Unidos, aliados históricos, não vão contrariar o actual Governo de extrema-direita liderado por Itamar Ben-Gvir.”

O novo executivo israelita, que integra figuras como Bezalel Smotrich, defende abertamente a anexação da totalidade da Cisjordânia. A narrativa do “Grande Israel” deixou de ser marginal — é política oficial.

A diplomacia portuguesa, por sua vez, manteve-se em linha com Bruxelas, mas sem palavras contundentes. Em Lisboa, o Ministério dos Negócios Estrangeiros referiu-se apenas a “uma evolução preocupante”. Não usou a palavra “apartheid”.

Apartheid: palavra maldita, realidade incómoda

A palavra começa a penetrar no léxico diplomático, embora muitos a evitem. Mas a Amnistia Internacional, em relatório de 2022, foi clara: Israel mantém um sistema de dominação e opressão que se enquadra juridicamente na definição de apartheid segundo a Convenção sobre o Crime de Apartheid de 1973.

Num extenso parecer jurídico solicitado por esta reportagem, o professor Miguel Serra, especialista em Direitos Humanos da Universidade de Coimbra, é taxativo: “Com este voto, Israel aproxima-se do modelo da África do Sul pré-1994. Há duas populações no mesmo território, com dois sistemas legais distintos. Um tem direitos, o outro tem vigilância.”

O mapa que (já) não existe

A famosa cartografia da “solução de dois Estados” já era um puzzle de enclaves e corredores controlados militarmente. Com o novo impulso anexionista, o que resta? A resposta pode estar num novo mapa que circula entre diplomatas da região: não há mais áreas A, B e C. Há Israel — e zonas sob controlo israelita.

“A Palestina como projecto nacional viável deixou de existir no terreno. O que existe são bantustões cercados, sem autonomia, sem continuidade territorial, sem soberania”, afirma Ilan Pappé, historiador israelita, exilado no Reino Unido.

Que futuro?

Estaremos a assistir, ao vivo, ao enterro da Palestina? A pergunta não é retórica. Um velho diplomata norueguês, um dos arquitectos dos Acordos de Oslo, resumiu assim a sua frustração: “Negociámos com fé. Mas nunca vimos que o outro lado estava sempre a cavar o túmulo da solução.”

Hoje, já não se discute paz — discute-se gestão do conflito. O termo favorito em Washington é “minimização da instabilidade”.

Mas a instabilidade já é a nova norma. E o silêncio ensurdecedor da comunidade internacional começa a soar a cumplicidade.

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