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Resumo

  • A culpa deixa de ser dos bancos ou das políticas de austeridade e passa a recair sobre os “estrangeiros que roubam subsídios”, os “ciganos que vivem à custa do Estado”, os “refugiados muçulmanos que trazem insegurança”.
  • O fenómeno é particularmente visível nas zonas pós-industriais, periféricas e rurais, onde o abandono do Estado e o colapso das actividades produtivas criaram sentimentos de invisibilidade e perda de identidade.
  • Estudos da OCDE e do Eurobarómetro demonstram que o apoio a partidos de extrema-direita cresce em correlação com cortes no investimento público, aumento da desigualdade e quebra na protecção social.

Que papel desempenham a recessão, o desemprego e a austeridade na ascensão da extrema-direita? Em tempos de crise, a política transforma-se. As promessas quebradas, a insegurança material e a erosão do futuro criam o terreno fértil para discursos radicais que oferecem identidade, ordem e culpados. A história mostra-o. E o presente confirma-o.

A crise económica é mais do que um fenómeno financeiro — é uma experiência existencial. Perante a perda de emprego, casa ou dignidade, os cidadãos sentem-se abandonados por um sistema que já não protege. Nesse vácuo, surgem os partidos extremistas, não como simples opositores, mas como salvadores autoproclamados da “nação traída”.

Na Europa, da Grécia à Alemanha, da Hungria a Portugal, a extrema-direita tem capitalizado sobre as fracturas sociais deixadas por décadas de neoliberalismo e políticas de austeridade. A pergunta, hoje, não é se a crise favorece o radicalismo. É como impedir que a dor social seja transformada em ódio político.


A economia como motor da história: das ruínas de Weimar à troika

O fascismo histórico emergiu em contextos de colapso económico. Na Alemanha de Weimar, a hiperinflação, o desemprego massivo e o Tratado de Versalhes criaram uma sensação colectiva de humilhação. Hitler não chegou ao poder com tanques, mas com promessas de estabilidade e resgate nacional. Em Itália, Mussolini surfou a crise social do pós-Primeira Guerra Mundial, apelando à ordem contra o caos socialista.

No século XXI, o padrão repete-se. A crise financeira global de 2008 não apenas destruiu fortunas — destruiu confianças. Bancos resgatados, famílias despejadas, salários cortados, jovens forçados a emigrar. A resposta dominante? Políticas de austeridade.

Países como Portugal, Grécia, Irlanda e Espanha foram sujeitos a imposições severas por parte da Comissão Europeia, FMI e BCE. Os efeitos foram devastadores: perda de direitos laborais, colapso dos serviços públicos, precarização generalizada.

É neste cenário que o ressentimento floresce. E que partidos como o Chega, o Vox, a AfD (Alemanha), a Aurora Dourada (Grécia) ou o Fidesz (Hungria) se apresentam como alternativas “antissistema”, mesmo quando promovem soluções ainda mais regressivas.


Ressentimento e identidade: o salto da queixa económica para o ódio cultural

O que começa como crítica económica rapidamente se transforma em discurso identitário. A culpa deixa de ser dos bancos ou das políticas de austeridade e passa a recair sobre os “estrangeiros que roubam subsídios”, os “ciganos que vivem à custa do Estado”, os “refugiados muçulmanos que trazem insegurança”.

Esta transição é estratégica. Permite desviar a raiva das estruturas para os indivíduos. Em vez de questionar a arquitectura do sistema económico global, oferece-se um bode expiatório visível, próximo e, muitas vezes, vulnerável.

É o que a cientista política Wendy Brown chama de “despolitização da economia”: a transformação de um problema sistémico num conflito moral. Assim, a extrema-direita converte a desigualdade em indignação moral contra os mais fracos.


O desemprego juvenil e o voto protesto: uma geração sem chão

Em muitos países europeus, a taxa de desemprego jovem ultrapassou os 25 % após 2008. Na Grécia e em Espanha, chegou a rondar os 40 %. Em Portugal, milhares emigraram. Os que ficaram encontraram precariedade, baixos salários e ausência de perspectivas.

Este desamparo não se traduz necessariamente em voto à esquerda. A geração que cresceu sem estabilidade tende a desconfiar dos partidos tradicionais — de ambos os espectros. A extrema-direita capta parte desse eleitorado através de um discurso de “ruptura”, “verdade crua” e promessa de “limpeza do sistema”.

O fenómeno é particularmente visível nas zonas pós-industriais, periféricas e rurais, onde o abandono do Estado e o colapso das actividades produtivas criaram sentimentos de invisibilidade e perda de identidade. O que antes era orgulho operário ou comunitário, é agora ressentimento social.


Políticas de austeridade: quando o Estado corta, o extremismo cresce

Estudos da OCDE e do Eurobarómetro demonstram que o apoio a partidos de extrema-direita cresce em correlação com cortes no investimento público, aumento da desigualdade e quebra na protecção social. Quando o Estado se retrai, o espaço é ocupado por discursos radicais que prometem “justiça à força”.

O caso grego é paradigmático. A Aurora Dourada, partido abertamente neonazi, emergiu como força política durante os anos mais duros da intervenção da troika. Alcançou o terceiro lugar nas eleições de 2015, propondo segurança brutal, supremacia grega e perseguição a migrantes.

Embora este partido tenha sido criminalizado em 2020, o seu legado político persiste. E outros movimentos seguem a mesma cartilha: usar a dor social para justificar o autoritarismo.


Economia identitária: proteccionismo, nacionalismo e “soberania”

A nova extrema-direita não rejeita o capitalismo — redefine-o. Propõe um modelo de capitalismo nacionalista, onde o proteccionismo económico e o controlo da imigração são usados para proteger o “povo autêntico”. Fala-se de “preferência nacional”, de “empregos para os nossos”, de “produção patriótica”.

Este discurso tem apelo. Apresenta-se como alternativa aos excessos da globalização neoliberal, sem abandonar os privilégios de classe. É uma versão socialmente reaccionária do populismo económico — que rejeita o pluralismo, mas promete protecção económica num mundo hostil.

Em França, Le Pen propôs impostos diferenciados para empresas que contratassem estrangeiros. Na Hungria, Orbán vinculou benefícios sociais à “raça húngara”. Em Itália, Meloni defende uma “Europa dos povos” que exclua muçulmanos e africanos.


A resposta democrática: políticas públicas que previnam a radicalização

Combater a extrema-direita exige mais do que discursos contra o ódio. Requer políticas concretas que reduzam as desigualdades, restituam dignidade económica e promovam coesão social. Algumas medidas estratégicas incluem:

  • Rendimento básico de cidadania ou reforço do salário mínimo.
  • Investimento em serviços públicos, saúde e educação gratuita e universal.
  • Habitação acessível como bem comum, não como produto financeiro.
  • Educação crítica contra estigmas sociais e teorias da conspiração.
  • Participação comunitária e descentralização das decisões económicas.

A melhor forma de contrariar o discurso do medo é garantir que ninguém fique para trás. E que as instituições sejam vistas como protectoras, e não como carrascas.


Conclusão: não há democracia sem justiça social

A ascensão da extrema-direita não é um acidente — é consequência. De decisões económicas, de abandonos políticos, de desigualdades ignoradas. Quando o sistema falha em oferecer segurança, dignidade e futuro, a tentação do autoritarismo cresce. E com ela, o risco de colapso democrático.

A história já mostrou onde isso leva. A questão, agora, é se estamos dispostos a aprender. Porque o preço da austeridade não é apenas humano — é político. E pode ser irreversível.


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