Resumo
- Com o 25 de Abril, essa fronteira desfez-se — e a mobilidade tornou-se símbolo e prática de liberdade.
- Entre os anos 50 e início de 70, cerca de 1,5 milhões de portugueses emigraram — muitos deles jovens — em busca de trabalho e dignidade.
- Com a queda do regime, a mobilidade deixou de ser uma infração e passou a ser direito.
E se a liberdade coubesse num passaporte? Para os jovens que cresceram em ditadura, atravessar fronteiras era um sonho vigiado. O Estado controlava quem saía, quem voltava, e sobretudo quem ousava fugir. Com o 25 de Abril, essa fronteira desfez-se — e a mobilidade tornou-se símbolo e prática de liberdade. Este artigo traça a transformação radical do direito de circular, estudar, trabalhar e viver além-fronteiras, de uma geração aprisionada ao nascimento de uma juventude europeia.
Antes da Revolução: passaporte negado, mobilidade vigiada
Durante o Estado Novo, a mobilidade juvenil era rigidamente controlada. O passaporte não era um direito — era um privilégio concedido pelo Ministério do Interior, frequentemente negado por razões políticas, ideológicas ou morais. Jovens com histórico de activismo, ligações familiares à oposição ou até “má conduta” escolar viam os seus pedidos recusados.
“Quis estudar em França, mas disseram-me que não era ‘conveniente para a moral nacional’,” conta António Lopes, hoje reformado, impedido de sair do país em 1972. “Ser jovem e querer o mundo era considerado suspeito.”
As fronteiras funcionavam como paredes. Emigrar era possível, mas sob vigilância. Fugir à guerra colonial, por exemplo, era crime. Milhares de jovens atravessaram os Pirenéus clandestinamente, a pé, pela neve, para escapar ao recrutamento.
Emigração forçada, não escolhida
Entre os anos 50 e início de 70, cerca de 1,5 milhões de portugueses emigraram — muitos deles jovens — em busca de trabalho e dignidade. Não se tratava de mobilidade livre, mas de necessidade vital. França, Alemanha, Suíça e Luxemburgo acolhiam braços para a reconstrução pós-guerra europeia. Portugal exportava força de trabalho, não talento.
“O Estado empurrava-nos para fora, mas sem nos dar estatuto,” explica Maria Beatriz Rocha-Trindade, socióloga da emigração. *”A juventude portuguesa era útil, mas invisível.”
A palavra “fuga” era recorrente. Fugia-se à miséria, à guerra, à ausência de futuro. E, quase sempre, sem regresso previsto.
25 de Abril: passaporte desbloqueado
Com a queda do regime, a mobilidade deixou de ser uma infração e passou a ser direito. A abolição da censura política nos serviços consulares e a desburocratização dos passaportes marcaram os primeiros sinais da liberdade de circulação. Portugal abriu-se ao mundo — e o mundo começou a abrir-se aos jovens portugueses.
“Em 1975, comprei o meu primeiro bilhete de comboio internacional. Não tinha destino certo, só liberdade,” conta Helena Silva, então com 20 anos. “Foi o meu 25 de Abril pessoal.”
O passaporte deixou de ser sinal de privilégio. Passou a ser instrumento de cidadania.
Integração europeia: o mundo ao alcance da mochila
Com a adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia em 1986, a mobilidade jovem deu um salto histórico. Surgiram programas como o Erasmus, Leonardo da Vinci e, mais recentemente, o DiscoverEU, que permitem a estudantes e jovens trabalhadores viajarem, estudarem e partilharem experiências pelo continente.
O bilhete de comboio gratuito, símbolo do DiscoverEU, tornou-se um novo “cravo” na lapela da liberdade europeia. Em 2023, mais de 2 mil jovens portugueses participaram neste programa. Para muitos, foi a primeira viagem internacional sem controlo, sem destino imposto, sem medo.
“Nunca fui à tropa, mas atravessei a Europa com uma mochila às costas e um livro do José Saramago,” diz Diogo F., 19 anos, natural de Viseu. “Essa é a minha forma de servir o país — conhecendo o mundo.”
Novos direitos, novas escolhas
Hoje, a mobilidade juvenil já não é apenas física: é também digital, cultural, profissional. Os jovens portugueses estudam em Madrid, estagiam em Bruxelas, empreendem em Berlim, dançam em Amesterdão. Têm múltiplas pertenças e uma identidade cada vez mais europeia e cosmopolita.
Ao mesmo tempo, enfrentam desafios novos: precariedade, desigualdades de acesso, burocracias invisíveis. A liberdade conquistada há 50 anos precisa de ser protegida face à ameaça do populismo, da xenofobia e do retrocesso europeu.
“Viajar é mais do que turismo: é formação política,” afirma Nuno Ferreira, investigador em mobilidade e juventude. “Cada jovem que atravessa uma fronteira é um voto contra o fechamento.”
Das fronteiras do medo aos mapas da liberdade
O percurso entre a juventude controlada pelo lápis azul e a juventude com mochila às costas é feito de lutas, reformas, políticas públicas e sonhos individuais. O passaporte, outrora negado, tornou-se símbolo de pertença ao mundo. Não como exílio, mas como escolha.
“O que mudou não foi só a rota — foi o destino,” resume Mariana Alves, que nasceu em 1999 e já viveu em quatro países. *”Somos filhos do Abril que ousou partir.”
Fontes e dados:
– Arquivo “Liberdades Jovens: Antes e Depois”
– Instituto Nacional de Estatística (dados de emigração jovem)
– Programas DiscoverEU, Erasmus+ e ANDA (Agência Nacional para o Desenvolvimento da Aprendizagem)
– Entrevistas a jovens emigrantes e estudantes internacionais
– Trabalhos académicos de Maria Beatriz Rocha-Trindade, João Peixoto e Nuno Ferreira