Resumo
- Segundo o relatório Chega e Evangélicos em Portugal, a penetração partidária já não se restringe ao púlpite ou às redes sociais.
- O relatório documenta casos em que esses meios passaram a intercalar hinos com entrevistas de políticos do Chega ou excertos de discursos parlamentares.
- Se a cultura evangélica — da música aos media — for cada vez mais associada a um partido, a comunidade corre o risco de perder pluralidade e ser vista apenas pelo prisma político.
Num concerto de música gospel em Almada, entre canções sobre fé e esperança, surgiu uma frase inesperada projetada no ecrã: “Portugal precisa de líderes firmes contra a ideologia de género.” A maioria dos presentes entendeu de imediato a alusão política. A noite, que deveria ser apenas celebração espiritual, transformou-se num espaço de afirmação ideológica.
Segundo o relatório Chega e Evangélicos em Portugal, a penetração partidária já não se restringe ao púlpite ou às redes sociais. Eventos culturais, música gospel e media religiosos estão a ser atravessados por narrativas próximas da retórica de André Ventura.
O gospel como veículo político
A música gospel é pilar das igrejas evangélicas, especialmente nas comunidades brasileiras em Portugal. Nos cultos e grandes eventos, o ambiente festivo envolve emoção coletiva e sentimento de pertença. Alguns líderes têm aproveitado essa energia para inserir mensagens políticas em letras, orações e discursos entre canções.
“É uma estratégia subtil, mas eficaz. Quando se canta, a mensagem entra pelo coração, não apenas pelo raciocínio”, explica a musicóloga Rita Fernandes. A sobreposição entre louvor e propaganda cria um terreno fértil para a adesão emocional ao Chega.
Media evangélicos: fé e política no mesmo canal
Rádios locais, canais de YouTube e transmissões em direto são ferramentas centrais na comunicação evangélica. O relatório documenta casos em que esses meios passaram a intercalar hinos com entrevistas de políticos do Chega ou excertos de discursos parlamentares.
O formato mantém aparência de programa religioso, mas o conteúdo mistura apelo espiritual com agenda partidária. “Estamos perante uma forma de infotainment político-religioso”, observa o investigador João Pedroso, especialista em media e religião.
Eventos religiosos como palcos eleitorais
Conferências de jovens, encontros de mulheres e vigílias de oração tornaram-se ocasiões de visibilidade política. Oradores convidados recorrem a temas como aborto, imigração ou família, alinhando-os com a retórica venturista. Em algumas ocasiões, a presença de candidatos locais do Chega é assumida, ainda que não oficialmente anunciada.
Fiéis descrevem a sensação de ambiguidade: “Cantámos louvores, mas saímos a falar de voto”, relata um jovem crente brasileiro residente em Setúbal.
Cultura em disputa
A entrada do Chega no universo cultural evangélico gera entusiasmo em uns e repulsa noutros. Para simpatizantes, é sinal de que a fé finalmente ganhou voz na política. Para críticos, trata-se de uma manipulação perigosa. “O risco é a mensagem do evangelho ser confundida com propaganda partidária”, alerta Rita Fernandes.
Se a cultura evangélica — da música aos media — for cada vez mais associada a um partido, a comunidade corre o risco de perder pluralidade e ser vista apenas pelo prisma político.
Entre louvor e propaganda
O gospel, espaço de comunhão e espiritualidade, está hoje no centro de uma disputa pela alma da comunidade evangélica. O dilema é simples mas perturbador: quando o microfone passa de mão em mão, estará a transmitir fé ou propaganda?
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