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Resumo

  • O partido Chega ergueu-se como profeta anticorrupção e conquistou votos à boleia de escândalos que envergonham governos de esquerda e de direita.
  • E como se converteu num megafone de desinformação que empurra o debate democrático para o abismo.
  • O tema imigração passou-lhe à frente em posts e visualizações, segundo o monitor EDMO, embora a ideia-chave persista.

O partido Chega ergueu-se como profeta anticorrupção e conquistou votos à boleia de escândalos que envergonham governos de esquerda e de direita. Mas até que ponto a narrativa “todos roubam, só nós limpamos” assenta em factos? E como se converteu num megafone de desinformação que empurra o debate democrático para o abismo?


1. Anatomia de um discurso inflamável

Basta folhear a cronologia digital de André Ventura para perceber o tom martelado: “elites corruptas”, “Estado podre”, “roubo ao povo”. Um estudo da Nature sobre a campanha de 2022 revela que 39 % dos tweets do líder do Chega versavam “regeneração democrática” e corrupção; o tema foi o segundo mais citado, atrás apenas da vaga rubrica “renovar a democracia” Nature. Quatro anos depois, o refrão mantém-se – mas com mais volume e menos nuance.

O vigor retórico não é gratuito. Inquérito académico publicado em 2024 indica que 65 % dos eleitores que escolheram o Chega apontam “corrupção dos partidos tradicionais” como razão principal do voto MDPI. Trata-se de uma indignação legítima ou de raiva canalizada? Eis a centelha que incendiou círculos eleitorais onde a confiança na política estava já ressequida.

Nos corredores virtuais, o efeito ecoa. O relatório do EDMO sobre as legislativas de 2025 mapeou três meta-narrativas radicais: “Portugal é um covil de corruptos”, “o país está tomado pela imigração” e “as instituições sabotam o povo” edmo.eu. A primeira foi importada, polvilhada com referências à Lava-Jato brasileira e servida quente nas redes portuguesas.

Pergunta 1: indignação popular ou marketing político de alta octanagem?


2. Tropicalização da “cruzada anticorrupção”

A propaganda mistura ingredientes locais e tropicais. O caso Operação Marquês – José Sócrates volta a tribunal este mês por 22 crimes, três deles de corrupção passiva – ocupa manchetes desde 2025 Rádio Renascença. Cada sessão do julgamento renova o arsenal retórico de Ventura: “prova” de que o sistema favorece “boys do regime”.

À direita, o fogo alastra. Em Março, o governo minoritário de Luís Montenegro implodiu entre suspeitas de contratos familiares; o episódio empurrou Portugal para a terceira eleição em três anos e deu ao Chega nova munição contra “rosas” e “laranjas” The Times. O timing não podia ser mais propício: o partido apresentou-se como detergente antipodridão enquanto rivais mastigavam explicações legais.

Nas televisões, “corrupção” ganha sotaque estrangeiro. Venturas e correligionários citam cifras colossais – “20 mil milhões de euros por ano” – já desmontadas pelo Polígrafo como exagero sem base oficial Polígrafo. Contudo, o mito resiste. Porquê?

Pergunta 2: quando a indignação vira espectáculo, quem confere o recibo?


3. Dados eleitorais: gasolina ou travão?

O coro anticorrupção rendeu dividendos rápidos. Nas legislativas de Março 2024 o Chega trepou aos 18 %; porém, nas europeias de Junho caiu para 9,8 % e apenas dois mandatos Wikipedia. Analistas atribuem o recuo a campanha dominada por imigração – mas também a fact-checks insistentes que desmontaram promessas impossíveis.

Ainda assim, nas redes o partido continua imparável. O mesmo relatório do EDMO mostra que um terço de todas as interacções partidárias no Facebook recaem sobre conteúdos do Chega; no TikTok o número de visualizações triplicou entre 2024 e 2025 edmo.eu. A aritmética é simples: mesmo com menos votos, a mensagem chega mais longe, mais depressa.

Curiosamente, a palavra “corrupção” perdeu protagonismo em 2025. O tema imigração passou-lhe à frente em posts e visualizações, segundo o monitor EDMO, embora a ideia-chave persista: “cinquenta anos de corrupção socialista” – slogan replicado em páginas anónimas sincronizadas. As brasas continuam acesas.

Pergunta 3: pode a factura eleitoral conter o estrago digital?


4. Fact-checking: mito versus realidade

Exemplo 1 – “Confisco prévio dos corruptos impedido pelo PAN”
Ventura afirmou num debate que o PAN travou a proposta do Chega de confiscos antecipados. Falso: não existe registo de tal projecto de lei, conclui o Polígrafo Polígrafo.

Exemplo 2 – “Dois milhões de imigrantes sustentados pelo Estado”
O partido repete o número há meses; a Agência para a Integração, Migrações e Asilo aponta apenas 880 mil estrangeiros residentes. Declaração classificada como “Mentira” pelo fact-checker Polígrafo.

Exemplo 3 – “Corrupção custa 20 mil milhões por ano”
Estudo académico citado é parcial e não inclui benefícios económicos dos contratos públicos. Sem metodologia clara, a cifra é especulativa Polígrafo.

Cada correcção recebe um terço das partilhas do conteúdo original. Quando chega, já muita gente clicou, comentou, partilhou. O estrago reputacional ao sistema mantém-se.

Pergunta 4: valerá a pena discutir números num ringue onde a palavra “roubo” já venceu por KO emocional?


5. Porque resulta o argumento “todos são ladrões”?

  1. Défice de confiança crónico – Estudos europeus registam níveis de confiança no governo abaixo de 45 % desde 2011.
  2. Memória fresca de escândalos – Caso Sócrates arrasta-se há década; o Luís Montenegro-gate trouxe nova camada.
  3. Economia desigual – Em 60 % dos concelhos onde o Chega bateu 20 %, o rendimento médio é inferior à média nacional, cruzaram investigadores do INESC-ID (dados internos).
  4. Retórica moral binária – “Nós” versus “eles” simplifica dilemas complexos e dá alívio emocional a eleitores cansados de tecnicalidades jurídicas.

6. O risco democrático

A corrosão vai além do voto. Quando a ideia de um país “infestado de ladrões” se instala, abre-se porta a soluções autoritárias: leis de exceção, cortes ao contraditório, tentação de concentrar poder para “limpar a casa”. A história recorda: regimes que surgem como faxinas morais tornam-se, frequentemente, em novos focos de abuso.

Pergunta 5: se entregarmos a vassoura a quem grita mais alto, quem varrerá os seus próprios resíduos?


7. Antídotos possíveis

ActorMedidaImpacto esperadoPrazo
Assembleia da RepúblicaRegra de transparência obrigatória para publicidade política online superior a 100 €Traçar origem dos anúncios anónimos2026
Entidade Reguladora para a Comunicação SocialPainel público de desempenho de fact-checks (tempo de resposta, alcance)Pressão reputacional sobre media e plataformas2025
PlataformasEtiqueta de contexto automática quando post repete “corrupção” + cifra sem fonte oficialReduz viralidade oportunista em 12 % (projecção EDMO)Piloto nas autárquicas de 2026
ICS-ULisboa & escolasMódulos de literacia política: “como ler promessas anticorrupção”Maior resistência entre jovens votantesCurrículo 2026/27

8. Conclusão

A corrupção existe, corrói e revolta. Mas quando se transforma no mantra único de uma força populista, converte-se em arma de destruição institucional. O Chega surfa essa onda com mestria, diluindo fronteiras entre denúncia legítima e demagogia digital. O desafio não é silenciar críticas: é elevar-las da lama da suspeita permanente para o terreno firme da prova, da lei e da reforma séria.

Sem esse exercício, a democracia portuguesa arrisca caminhar de escândalo em escândalo até que a exaustão cívica abra caminho a atalhos autoritários. Ainda vamos a tempo de evitar o curto-circuito?

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