Partilha

Resumo

  • A identificação de uma casa devoluta continua a depender da verificação física de indícios de abandono, como portas emparedadas ou caixas de correio entupidas — uma metodologia ultrapassada, lenta e sujeita a contestação.
  • De acordo com dados solicitados pela Provedoria de Justiça ao Ministério das Finanças, em 2023 foram apenas 3 089 os imóveis sujeitos a IMI agravado por estarem classificados como devolutos — uma ínfima fração face ao universo de casas sem uso permanente.
  • Sem esse instrumento, o cruzamento entre registos de água, eletricidade e telecomunicações — essencial para detetar casas sem uso — continua a ser juridicamente problemático por envolver questões de proteção de dados.

Crise habitacional agrava-se enquanto falha o cadastro nacional de imóveis devolutos

Apesar de Portugal contabilizar mais de 730 mil habitações desocupadas, a esmagadora maioria não está oficialmente classificada como devoluta. Sem cadastro nacional actualizado, com câmaras municipais desprovidas de meios técnicos e vontade política, o país assiste à degradação do parque habitacional enquanto milhares enfrentam dificuldades extremas no acesso à habitação.

Num país mergulhado numa crise habitacional prolongada, os números impressionam. Segundo os dados mais recentes dos Censos 2021, existem em Portugal mais de 733 mil alojamentos sem residentes habituais — o que representa cerca de 13 % do total de casas existentes no território nacional. Ainda assim, o número oficial de imóveis considerados devolutos e sujeitos a penalizações como o IMI agravado ou o arrendamento forçado é insignificante.

Porquê?

A resposta é simples e devastadora: o Estado não sabe, ao certo, quais casas estão realmente devolutas. Falta um cadastro nacional fiável, actualizado e coerente entre municípios. O que existe são listas fragmentadas, inconsistentes e, em muitos casos, meramente indicativas. A identificação de uma casa devoluta continua a depender da verificação física de indícios de abandono, como portas emparedadas ou caixas de correio entupidas — uma metodologia ultrapassada, lenta e sujeita a contestação.


Resistência política, medo da litigância

As câmaras municipais têm, desde 2006, instrumentos legais para classificar imóveis como devolutos, aplicar uma taxa agravada de IMI (que pode ir até 12 vezes a taxa normal) e, mais recentemente, recorrer ao arrendamento forçado ao abrigo do pacote “Mais Habitação”. No entanto, a maioria dos municípios não o faz.

“Não temos recursos humanos suficientes para manter vigilância sobre milhares de imóveis”, admite ao nosso jornal uma fonte da Câmara Municipal de Setúbal. “E há um grande receio de litígios por parte dos proprietários.”

Este temor jurídico, amplamente partilhado por autarcas e técnicos de urbanismo, é alimentado por legislação ambíguafalhas no registo predial e conflitos sucessórios que tornam incerta a titularidade de muitos imóveis.

Além disso, existe resistência política, particularmente em câmaras controladas por partidos mais conservadores, em avançar com medidas que envolvam ingerência na propriedade privada.


Apenas 3 000 imóveis com IMI agravado em 2023

De acordo com dados solicitados pela Provedoria de Justiça ao Ministério das Finanças, em 2023 foram apenas 3 089 os imóveis sujeitos a IMI agravado por estarem classificados como devolutos — uma ínfima fração face ao universo de casas sem uso permanente.

Autoridade Tributária (AT) não dispõe de meios autónomos para inspecionar o estado de ocupação dos imóveis. Depende das informações remetidas pelos municípios, que muitas vezes não atualizam os dados ou recuam face a impugnações dos proprietários.


Pressão urbana e bairros vazios

O paradoxo é evidente. Em freguesias de Lisboa como Arroios ou Misericórdia, os preços médios de arrendamento superam os 20 €/m². Ainda assim, há prédios inteiros desabitados há mais de uma década, muitos pertencentes a fundos imobiliários, heranças indivisas ou empresas fantasma.

“Vemos janelas sempre fechadas, correio acumulado, sinais claros de abandono”, relata Joana Martins, moradora e activista da associação Habitar Lisboa. “E mesmo assim, a câmara nada faz. O que falta é coragem política.”

Segundo um levantamento da organização Habitação para Todos, existem em Lisboa mais de 2 500 edifícios com sinais exteriores de desocupação prolongada, mas menos de 200 estão oficialmente classificados como devolutos.


“Devoluto” é o quê?

A lei portuguesa define como devoluto o prédio urbano “total ou maioritariamente desocupado por um período superior a um ano”, excetuando situações justificadas (obras, emigração temporária, etc.). No entanto, a verificação prática dessa condição é morosa e contestável.

jurista Eduardo Vilela, especializado em direito da habitação, considera que o critério é “vago, pouco operacionalizável e juridicamente frágil”. “Num sistema judicial sobrecarregado, um processo de classificação pode demorar anos. Até lá, o imóvel continua vazio.”


Falta o cadastro nacional

Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) previa a criação de um cadastro predial actualizado e integrado até 2024, mas a execução está atrasada. Sem esse instrumento, o cruzamento entre registos de água, eletricidade e telecomunicações — essencial para detetar casas sem uso — continua a ser juridicamente problemático por envolver questões de proteção de dados.

“O Estado português falha, há décadas, na missão básica de saber quem é dono de quê e em que estado está o património edificado”, afirma a urbanista Ana Clara Ribeiro, da Universidade do Minho. “Não é só uma falha técnica — é um bloqueio estrutural.”


E agora?

A crise da habitação em Portugal obriga a escolhas políticas corajosas. Mas, sem dados fiáveis e com um sistema institucional inerte, as casas continuam vazias, os preços sobem, e as famílias desesperam. O “milagre” de transformar os devolutos em resposta habitacional permanece, por enquanto, uma promessa por cumprir.

Como resolver? A resposta parece simples: mapear, classificar, agir. Mas, no país onde a propriedade é tabu, o Estado continua a espreitar pela fechadura, incapaz de abrir a porta.


Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

You May Also Like

Portugal em crise demográfica: a lei laboral está a travar ou a incentivar a natalidade?

Partilha
Partilha Resumo O país envelhece, as famílias encolhem, e os casais em…

O isco perfeito: choque curto, gratificação algorítmica

Partilha
Partilha Resumo O algoritmo mede reações, não veracidade, e empurra o conteúdo…

Islamização em Números: O Que Dizem os Dados Sobre os Muçulmanos em Portugal

Partilha
Partilha Resumo Segundo os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística…