Resumo
- O Executivo defende a medida como resposta à “necessidade de adaptação a flutuações produtivas”, mas para sindicatos e juristas trata-se de uma regressão legal que agrava a imprevisibilidade dos horários e expõe os trabalhadores a pressões inaceitáveis.
- O Ministério do Trabalho afirma que o banco de horas individual “respeita a liberdade negocial” e pode “aumentar a competitividade sem pôr em causa direitos essenciais”.
- A Organização Internacional do Trabalho (OIT) alertou em 2024 para o aumento do risco de doenças cardiovasculares e perturbações do sono entre trabalhadores em regimes de horas prolongadas sem compensação adequada.
Proposta do “Trabalho XXI” permite acordo directo entre trabalhador e empresa. Sindicatos falam em chantagem laboral. Especialistas alertam para erosão do direito ao descanso.
Lisboa, 30 jul 2025 – O regresso do banco de horas individual, previsto no anteprojeto “Trabalho XXI”, marca uma viragem na política laboral do Governo. Eliminado em 2021 por imposição parlamentar, este regime volta agora pela porta grande, permitindo que empresas e trabalhadores estabeleçam acordos diretos para aumentar temporariamente o tempo de trabalho – até duas horas por dia ou cinquenta por semana – sem compensação salarial imediata.
O Executivo defende a medida como resposta à “necessidade de adaptação a flutuações produtivas”, mas para sindicatos e juristas trata-se de uma regressão legal que agrava a imprevisibilidade dos horários e expõe os trabalhadores a pressões inaceitáveis.
“Estamos perante uma falsa escolha. O trabalhador é colocado numa posição em que, se recusar, arrisca perder oportunidades ou ser marginalizado. Isto não é liberdade contratual – é chantagem legalizada”, acusa Francisco Torres, advogado laboralista e consultor sindical.
Como funciona o banco de horas?
O banco de horas permite acumular horas suplementares de trabalho, que podem depois ser compensadas com folgas ou pausas, em vez de pagamento. A versão agora proposta permite que essa acumulação resulte de um simples acordo entre trabalhador e empregador, sem necessidade de contrato colectivo ou referendo interno.
Durante esse período, o trabalhador pode fazer até 150 horas extras por ano. A compensação só chega depois — muitas vezes em contexto de baixa, pausa contratual ou encerramento temporário da atividade.
Acordos “livres” ou sob coação?
O Ministério do Trabalho afirma que o banco de horas individual “respeita a liberdade negocial” e pode “aumentar a competitividade sem pôr em causa direitos essenciais”. Mas os dados apontam noutra direção.
Um inquérito da CITE realizado em 2023 concluiu que 68 % dos trabalhadores em regime de banco de horas sentiam que não podiam recusar o acordo sem repercussões. Em sectores como a hotelaria, a logística e os centros de contacto, os relatos de imposição velada são frequentes.
“Disseram-me que não era obrigatório. Mas na prática, quem não aceita fica na lista dos ‘não colaborativos’”, conta Rui Dias, operador num armazém em Vila Nova de Gaia. “Fiz semanas de 55 horas sem saber quando poderia descansar.”
A falta de previsibilidade tem impacto direto na saúde. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) alertou em 2024 para o aumento do risco de doenças cardiovasculares e perturbações do sono entre trabalhadores em regimes de horas prolongadas sem compensação adequada.
Precarização e desigualdade de poder
Além dos riscos físicos, o banco de horas acentua o desequilíbrio entre empregador e trabalhador. “Quem tem filhos, quem cuida de familiares, quem depende de transportes públicos… todos são penalizados por esta lógica de ajustamento permanente”, sublinha Catarina Ferreira, investigadora em Sociologia do Trabalho no ISCTE.
Nos países nórdicos, onde existem regimes semelhantes, a sua aplicação está fortemente regulada por convenções colectivas e acompanhada por mecanismos de controlo. Em Portugal, segundo os críticos, a proposta atual confia excessivamente na boa-fé empresarial, sem criar salvaguardas robustas.
“Flexibilidade só para quem manda”
A retórica da flexibilidade domina o discurso político desde a apresentação do Trabalho XXI. Mas para os trabalhadores em sectores de baixos salários e horários atípicos, flexibilidade significa muitas vezes ausência de previsibilidade, dificuldade em planear a vida pessoal e aumento do stress.
“Quando me dizem que o banco de horas é bom para todos, eu pergunto: quem decide quando posso descansar? Quem define o que é urgente? Porque é que o meu tempo vale menos do que o da empresa?”, questiona Sandra Monteiro, funcionária de supermercado com dois filhos pequenos.
Os sindicatos exigem a retirada imediata da proposta. “Não aceitaremos o regresso de um instrumento que serviu, no passado, para explorar a necessidade e manipular o desespero”, afirma Manuel Lages, da CGTP.
A proposta será discutida na Assembleia da República no último trimestre do ano. Para já, o que está em causa não é apenas uma fórmula de cálculo de horas — é a definição de um modelo de sociedade: regulado, solidário e previsível, ou volátil, assimétrico e dependente da vontade unilateral de quem paga.