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Resumo

  • A falta de médicos de família, os horários reduzidos dos centros de saúde, a escassez de especialistas em muitas regiões do país, especialmente no interior, fazem com que milhares de pessoas adiem — ou simplesmente desistam — de procurar ajuda médica.
  • Mas, muitas vezes, a falta de articulação entre serviços, a ausência de transportes públicos adequados e os custos cumulativos transformam a gestão da doença numa maratona solitária.
  • Além disso, o envelhecimento da população está a sobrecarregar os serviços — sem que o investimento em cuidados continuados e domiciliários acompanhe esse crescimento.

Por Redacção

Marcar uma consulta e esperar meses. Precisar de óculos e não os poder comprar. Saltar exames médicos por falta de dinheiro. Em 2024, mais de 7,8% da população portuguesa declarou não ter conseguido aceder a cuidados de saúde por razões económicas, geográficas ou administrativas. A conclusão está no relatório Portugal, Balanço Social 2024 — e é clara: o país que se orgulha do seu Serviço Nacional de Saúde está, silenciosamente, a deixar para trás milhares de pessoas.

A privação na saúde é uma forma cruel de exclusão. Porque não se nota todos os dias, mas corrói com o tempo. E porque, ao contrário de outras privações, pode custar anos de vida ou qualidade de vida. No fundo, trata-se de uma pergunta simples: quem está doente em Portugal tem mesmo como se tratar?

A barreira do dinheiro… e do sítio

As dificuldades não se limitam ao preço dos medicamentos ou das consultas privadas. A falta de médicos de família, os horários reduzidos dos centros de saúde, a escassez de especialistas em muitas regiões do país, especialmente no interior, fazem com que milhares de pessoas adiem — ou simplesmente desistam — de procurar ajuda médica.

Em 2024, mais de um milhão de utentes estavam sem médico de família. E entre os que têm, muitos esperam semanas por uma consulta. Se, pelo meio, surge uma dor aguda, um problema crónico ou uma dúvida sobre um diagnóstico, o acesso rápido é quase impossível — a não ser que se tenha dinheiro para pagar do próprio bolso.

“Fui ao centro de saúde e disseram-me que só havia vaga para dali a 21 dias. Acabei por ir às urgências. Esperei sete horas. Não tenho seguro nem posso pagar um privado.” — conta Henrique, 62 anos, reformado em Coimbra.

Saúde oral e mental: os grandes esquecidos

Há dois campos em que a privação é ainda mais gritante: a saúde oral e a saúde mental. Consultas de dentista continuam, em grande medida, fora do SNS — e os apoios são escassos e muito dirigidos. Resultado? Milhares de adultos e crianças vivem com dores, infeções e problemas dentários que seriam evitáveis.

Já a saúde mental, apesar do crescente debate público, continua subfinanciada e com resposta muito abaixo das necessidades. O acesso a psicólogos e psiquiatras é, para a maioria, um luxo. Em 2024, menos de 5% dos cuidados de saúde mental prestados em Portugal decorreram no SNS. A esmagadora maioria dos tratamentos é feita no sector privado — inacessível para quem vive com baixos rendimentos.

Doença crónica, resposta frágil

As pessoas com doenças crónicas enfrentam obstáculos acrescidos. A regularidade de exames, consultas de especialidade e medicação exige um sistema robusto e coordenado. Mas, muitas vezes, a falta de articulação entre serviços, a ausência de transportes públicos adequados e os custos cumulativos transformam a gestão da doença numa maratona solitária.

Além disso, o envelhecimento da população está a sobrecarregar os serviços — sem que o investimento em cuidados continuados e domiciliários acompanhe esse crescimento. Os mais velhos, muitas vezes sozinhos, enfrentam barreiras logísticas, tecnológicas e económicas que os afastam da prevenção e do tratamento.

E o que está mesmo a falhar?

Portugal investe menos em saúde, em percentagem do PIB, do que a média europeia. O SNS vive sob pressão: falta pessoal, faltam meios, falta organização. Os profissionais estão sobrecarregados, muitos em burnout, outros a abandonar o sector público. E, enquanto isso, o sector privado cresce — mas só para quem pode pagar.

A privatização silenciosa da saúde gera um país a duas velocidades: um onde se tem resposta atempada, outro onde se espera, adia… e sofre. A universalidade e gratuitidade prometidas no nascimento do SNS estão hoje a ser postas à prova.

Saúde é direito, não favor

Garantir cuidados de saúde dignos e acessíveis é um dever do Estado, não um prémio por bom comportamento. E quando quase 8% da população não consegue tratar-se, algo de grave se passa — não nas pessoas, mas no sistema.

A resposta passa por mais investimento, sim, mas também por reorganização, proximidade, desburocratização, valorização dos profissionais e aposta séria nos cuidados primários e na prevenção.

Porque não há igualdade sem saúde. E não há democracia plena quando a doença pesa mais no pobre do que no rico. A saúde não pode continuar a falhar onde devia, por princípio, proteger.

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