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Resumo

  • nestes três países, as populações negras e indígenas continuam a ser as mais visadas pelo sistema penal — e as menos protegidas por ele.
  • O Relatório da Comissão da Verdade e Reconciliação apontou para a destruição deliberada de línguas, famílias e identidades, em particular nos internatos religiosos.
  • A criminalização de comportamentos associados à pobreza e a políticas como a “intervenção do Norte” (que restringiu direitos em comunidades aborígenes) perpetuam um ciclo de exclusão.

Leis antirracistas vigoram em países como Brasil, Canadá e Austrália. Mas a realidade mostra o inverso do prometido: populações racializadas enfrentam maior risco de prisão, violência institucional e abandono perante crimes de ódio. Quando o sistema de justiça replica desigualdades históricas, de que lado está a lei?


O Canadá é frequentemente citado como modelo em direitos humanos. O Brasil tem uma das legislações mais severas contra o racismo. A Austrália reconhece, em lei, o genocídio cultural dos povos aborígenes. Mas os números falam mais alto: nestes três países, as populações negras e indígenas continuam a ser as mais visadas pelo sistema penal — e as menos protegidas por ele.

É a constatação sombria do relatório “Criminalização Global do Racismo e da Xenofobia”, que compara abordagens legais e sociais em várias jurisdições. O estudo expõe a profunda dissociação entre normas jurídicas e práticas institucionais, e revela uma verdade incómoda: o sistema de justiça, em vez de proteger, castiga de forma desproporcional aqueles que as leis dizem querer defender.


Brasil: O País com a Lei Antirracista Mais Antiga — e a Prisão Mais Negra

Desde 1989, o racismo é crime no Brasil — imprescritível e inafiançável. Em teoria, uma das legislações mais avançadas do mundo. Na prática, um sistema penal que reproduz o legado da escravatura.

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a população negra representa 67 % dos presos no país, apesar de corresponder a 56 % da população. É também o grupo mais assassinado pela polícia: 8 em cada 10 mortos por agentes do Estado são negros.

A subnotificação de crimes de ódio é generalizada, e as denúncias que chegam aos tribunais raramente resultam em condenações. O Ministério Público apresenta barreiras burocráticas e uma cultura institucional muitas vezes indiferente à motivação racial.

“Temos uma lei sem músculo. Quando um jovem negro é morto pela polícia, a questão racial é descartada como ‘confronto armado’. A presunção de inocência, nesses casos, não se aplica”, denuncia Joel Rufino, jurista e activista antirracista.


Canadá: Reconhecimento Sem Reparação

O Canadá reconheceu oficialmente, em 2015, que os povos indígenas foram vítimas de um processo sistemático de genocídio cultural. O Relatório da Comissão da Verdade e Reconciliação apontou para a destruição deliberada de línguas, famílias e identidades, em particular nos internatos religiosos.

Mas esse reconhecimento ainda não se traduziu em justiça efectiva. Os indígenas compõem apenas 5 % da população canadiana, mas representam 30 % das mulheres presas e 28 % dos homens detidos. Entre jovens em centros de detenção juvenil, os números sobem para 50 % em algumas províncias.

Além disso, os povos indígenas enfrentam obstáculos crónicos ao acesso à justiça. Em muitos casos, não confiam nas autoridades para denunciar abusos ou crimes motivados por ódio.

“A desconfiança vem de séculos de violência colonial, e não se resolve com declarações públicas ou desculpas oficiais”, afirma a advogada nativa Michèle Audette, ex-comissária do inquérito nacional sobre mulheres indígenas desaparecidas e assassinadas.


Austrália: O Sistema que Mantém os Aborígenes sob Vigilância

Na Austrália, o racismo contra povos aborígenes é muitas vezes descrito como ‘histórico’. Mas os dados revelam uma perseguição institucional activa e contínua.

O relatório destaca que um jovem aborígene tem 26 vezes mais probabilidade de ser detido do que um jovem branco. Em certas zonas rurais, até 80 % da população prisional é indígena. A criminalização de comportamentos associados à pobreza e a políticas como a “intervenção do Norte” (que restringiu direitos em comunidades aborígenes) perpetuam um ciclo de exclusão.

Nos tribunais, a intersecção entre racismo cultural, barreiras linguísticas e preconceito institucional é fatal. Muitos réus não compreendem os procedimentos legais ou não têm acesso a defesa adequada. Nos media, a narrativa criminaliza os aborígenes, reforçando estereótipos.

“A questão não é só a lei — é o olhar. Um olhar que vê o indígena como ameaça e nunca como vítima”, resume a jornalista aborígene Amy McQuire.


Discriminação Sistémica: Da Prisão à Impunidade

Em todos os três países, a assimetria é dupla: as populações racializadas são mais punidas e menos protegidas. Os crimes de ódio de que são alvo — desde agressões a insultos públicos — são frequentemente desvalorizados ou tratados como actos isolados.

A falta de estatísticas raciais consolidadas é parte do problema. No Brasil, os dados sobre motivação racial em processos penais são escassos. No Canadá, embora exista recolha de dados, a sua divulgação e utilização são limitadas. Na Austrália, os indicadores étnico-raciais não são sistematicamente cruzados com os sistemas de justiça.

Além disso, o preconceito institucional afecta todo o percurso judicial: desde o registo policial até à condenação ou arquivamento. Os próprios profissionais de justiça raramente reflectem a diversidade étnica das populações.


As Leis Não São Neutras — e Também Têm Cor

A criminalização do racismo não é, por si só, uma garantia de equidade. O relatório sublinha que o direito penal pode ser usado tanto para proteger como para punir desigualmente, dependendo do contexto, das instituições e das práticas.

A ausência de mecanismos de controlo externo, a falta de formação antirracista nos corpos policiais e a cultura judicial defensiva perpetuam a impunidade dos agressores e a criminalização das vítimas. A justiça torna-se, assim, mais uma instância de violência simbólica — e, por vezes, literal.


Rumo à Justiça Racial: O Que Falta?

A justiça racial exige mais do que leis: exige reparação, redistribuição, representatividade e responsabilização. Algumas medidas emergem como essenciais:

  • Tribunais especializados em crimes de ódio racial
  • Apoio jurídico gratuito e culturalmente sensível para populações racializadas
  • Recrutamento de magistrados e polícias com formação e vivência antirracista
  • Comissões de verdade e justiça com poder vinculativo, não apenas simbólico
  • Monitorização independente dos sistemas de justiça criminal, com dados desagregados por raça e etnia

Mais do que punir, é preciso restaurar. Mais do que legislar, é preciso escutar. A justiça, para ser justa, tem de reconhecer que a cor da pele ainda define quem é suspeito — e quem é esquecido.


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