Resumo
- Os dados do IHRU, cruzados com registos das autarquias, sugerem que o número real de devolutos poderá situar-se entre 200 mil e 300 mil.
- O mesmo se aplica a bairros urbanos com alta rotação ou transformação social, onde casas são temporariamente desocupadas por mudança de inquilino, heranças em processamento ou obras.
- – Distinguir imóveis devolutos de casas legalmente desocupadas;– Mapear a distribuição por tipologia, localização e estado de conservação;– Atualizar regularmente os dados com cruzamento entre IHRU, INE, conservatórias e Câmaras Municipais.
Relatórios apontam centenas de milhares de casas desocupadas em Portugal, mas os números escondem uma realidade mais complexa. Nem tudo o que parece vazio está ao abandono.
Setecentas mil casas vazias. O número salta à vista sempre que se fala de crise habitacional em Portugal. É o dado mais citado — e, paradoxalmente, também um dos mais mal compreendidos. Porque nem todas essas habitações estão, de facto, devolutas. Muitas são segundas residências, casas de férias, imóveis de emigrantes ou habitações temporariamente desocupadas por motivos legítimos. Separar o mito da realidade é urgente para evitar diagnósticos errados e políticas ineficazes.
O relatório “Casas Devolutas e Crise Habitacional” sublinha a importância de diferenciar entre “casa vaga” e “casa devoluta” — distinção muitas vezes ignorada no debate público. A confusão estatística tem alimentado tanto alarmismos como negações, dificultando o desenho de soluções efectivas para o problema.
Entre os Censos e o senso comum
Segundo os Censos 2021, existem em Portugal cerca de 723 mil casas vagas. Mas o conceito usado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) é abrangente: inclui casas de férias, habitações de emigrantes, imóveis em transição (à venda ou em obras) e sim, também os verdadeiramente devolutos.
Apenas uma parte — difícil de quantificar com precisão — corresponde a imóveis abandonados, sem uso, em ruína ou desocupados por longos períodos sem justificação. Os dados do IHRU, cruzados com registos das autarquias, sugerem que o número real de devolutos poderá situar-se entre 200 mil e 300 mil.
Para a jurista Inês Parente, especialista em direito urbano, “a ausência de uma definição legal clara de ‘devoluto’ tem sido um obstáculo constante. A actual legislação permite interpretações divergentes e cria zonas cinzentas que travam a acção pública.”
Casas de férias, emigrantes e o papel da interioridade
Grande parte das casas vagas localiza-se em zonas de baixa densidade: aldeias, vilas do interior, estâncias balneares sazonais. Nestes territórios, a proporção de habitações secundárias é elevada. Em concelhos como Alcoutim, Manteigas ou Carrazeda de Ansiães, mais de 40% das casas registadas estão “vazias” — mas apenas porque são usadas pontualmente por emigrantes ou descendentes em férias.
“Não podemos confundir desocupação sazonal com abandono. Muitos destes imóveis fazem parte da ligação emocional e patrimonial das famílias à sua terra de origem”, afirma a socióloga Marta Ramalho, citada no relatório. Penalizar estas casas com IMI agravado ou sujeitá-las a arrendamento coercivo seria, além de legalmente problemático, politicamente explosivo.
O mesmo se aplica a bairros urbanos com alta rotação ou transformação social, onde casas são temporariamente desocupadas por mudança de inquilino, heranças em processamento ou obras. A fotografia de um dado momento censitário não capta necessariamente a dinâmica real do uso do espaço.
A ilusão da abundância
O mito das “casas vazias a mais” pode criar uma falsa sensação de abundância. “Temos casas em excesso, dizem — mas falta perguntar: onde estão, em que estado, com que acessibilidade, e para quem servem?”, questiona o relatório. A esmagadora maioria dos imóveis classificados como vagos está em zonas rurais ou periurbanas sem procura habitacional significativa.
Lisboa, por exemplo, apresenta uma das taxas de devolutos mais elevadas nas freguesias centrais — como Arroios, Misericórdia ou Santa Maria Maior — mas essa realidade não se traduz nos dados nacionais agregados. E mesmo nestas áreas, a devolução está frequentemente associada a processos legais longos (heranças, litígios) ou à espera de reabilitação.
Para políticas eficazes, dados limpos
A ausência de um sistema nacional unificado de identificação de devolutos compromete qualquer intervenção estruturada. O relatório defende a criação de uma plataforma pública interinstitucional com três objectivos principais:
– Distinguir imóveis devolutos de casas legalmente desocupadas;
– Mapear a distribuição por tipologia, localização e estado de conservação;
– Atualizar regularmente os dados com cruzamento entre IHRU, INE, conservatórias e Câmaras Municipais.
“Só com dados rigorosos podemos desenhar políticas justas”, defende o economista João Lains. “Sem isso, arriscamos punir quem não deve e deixar impunes os verdadeiros responsáveis pelo bloqueio habitacional.”
Nem tudo o que parece vazio está abandonado. E enquanto o discurso político continuar a tratar as 700 mil casas vagas como um bloco monolítico, estaremos a falhar na raiz. Para combater a crise habitacional, é preciso conhecer — e reconhecer — a complexidade das casas “vazias”. Do mito à estatística, do ruído à verdade, a diferença está nos detalhes.