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Resumo

  • Este artigo observa como a moda se tornou símbolo da transgressão, da emancipação e da liberdade num país que, durante décadas, tentou esconder o corpo e domesticar o estilo.
  • A Igreja e a polícia de costumes ditavam o que era “digno” — e a juventude obedecia ou arriscava a marginalização.
  • O espólio fotográfico da Fundação Mário Soares, os acervos da RTP, e colecções de fotógrafos como Eduardo Gageiro ou Alfredo Cunha mostram uma juventude que trocou a rigidez do Estado Novo por um estilo desobediente, fluido e desafiante.


Pode um vestido ser um gesto político? No Portugal cinzento da ditadura, a forma de vestir não era apenas uma escolha estética — era um campo de batalha. A juventude, sobretudo a feminina, foi forçada a habitar um código visual conservador, moralista e vigilante. Com o 25 de Abril, esse código ruiu, dando lugar a uma explosão de cores, formas e afirmações. Este artigo observa como a moda se tornou símbolo da transgressão, da emancipação e da liberdade num país que, durante décadas, tentou esconder o corpo e domesticar o estilo.


O guarda-roupa do regime

Durante o Estado Novo, o vestuário era regulado não por decreto formal, mas por uma teia apertada de normas sociais, morais e eclesiásticas. As escolas impunham batas; os tribunais julgavam o “trajo indecoroso”; a censura reprimia qualquer representação de sensualidade. A Igreja e a polícia de costumes ditavam o que era “digno” — e a juventude obedecia ou arriscava a marginalização.

“Na aldeia, bastava usar calças justas ou uma blusa sem mangas para se ser chamada de ‘perdida’,” conta Isabel Monteiro, hoje com 70 anos. “Havia vergonha no corpo.”

A Mocidade Portuguesa promovia uniformes que anulavam a individualidade. As raparigas eram ensinadas a vestir-se “com recato”; os rapazes, com rigidez marcial. O vestuário era ferramenta de disciplina.


A minissaia como afronta

Com o início da década de 60, ventos de mudança sopravam de Londres e Paris. A minissaia, símbolo do feminismo emergente, chegou a Portugal com atraso — e choque. Em muitas cidades, jovens que ousavam vestir peças curtas eram insultadas na rua ou proibidas de entrar em igrejas e serviços públicos.

“A primeira vez que fui à Baixa com uma saia acima do joelho, senti que estava a cometer um crime,” recorda Helena Tavares, ex-estudante de Belas-Artes. “Mas era precisamente isso que me dava força.”

A censura televisiva e cinematográfica cortava planos de pernas femininas. Os catálogos de moda estrangeiros eram filtrados. As revistas nacionais publicavam “moda recatada” e conselhos de comportamento.


Revolução no corpo: 25 de Abril e libertação estética

Com a Revolução dos Cravos, o corpo português reencontrou-se com o mundo. As roupas tornaram-se mais leves, mais coloridas, mais diversas. A moda deixou de ser disfarce para passar a ser expressão.

A rua foi o primeiro palco da mudança. Em Lisboa, no Porto, em Coimbra, surgiam feiras alternativas, alfaiatarias experimentais e lojas de segunda mão. A t-shirt com slogans políticos, as calças à boca de sino, os padrões psicadélicos — tudo servia para mostrar que o tempo da imposição tinha acabado.

“Naquela altura, vestir diferente era quase tão importante como votar,” afirma Miguel Oliveira, sociólogo do vestuário. “O estilo foi a linguagem da revolução sem palavras.”


Entre o pessoal e o político: moda como discurso

Nos anos que se seguiram à Revolução, a juventude portuguesa redescobriu a moda como forma de identidade. Grupos emergentes — do punk ao movimento hippie, do feminismo ao ambientalismo — usavam o corpo como tela de contestação.

Os cabelos compridos nos rapazes, o uso de ganga, os piercings e os lenços palestinianos eram mais do que escolhas estéticas — eram declarações. A repressão tinha criado uma geração que associava a roupa à repressão; a liberdade devolveu-lhe a autoria.


Arquivos do estilo: recuperar a memória visual

Iniciativas recentes têm procurado recuperar o arquivo visual da moda da época. O espólio fotográfico da Fundação Mário Soares, os acervos da RTP, e colecções de fotógrafos como Eduardo Gageiro ou Alfredo Cunha mostram uma juventude que trocou a rigidez do Estado Novo por um estilo desobediente, fluido e desafiante.

Nas escolas e universidades, projectos como “Vestir a Liberdade” cruzam testemunhos pessoais com peças de vestuário preservadas — calças de ganga desbotadas, coletes bordados, botas militares — vestígios de um tempo em que cada peça era também um manifesto.


Moda e liberdade hoje: herança e novos combates

Hoje, num mundo saturado de imagens e tendências, a moda continua a ser campo de disputa política. Debates sobre identidade de género, apropriação cultural, fast fashion ou expressão corporal mantêm viva a tensão entre o vestir e o resistir.

A juventude portuguesa do século XXI herda, em parte, essa história de luta. Os movimentos LGBTQIA+, as causas ecológicas e feministas usam novamente o estilo como linguagem de visibilidade e afirmação.

“Ainda vestimos liberdade, mas temos de continuar a merecê-la,” resume Teresa M., estudante de Design de Moda.


Fontes e referências:

– Arquivo “Liberdades Jovens: Antes e Depois”
– Investigadores do Museu do Traje e da Moda
– Entrevistas com estilistas, sociólogos e ex-jovens da década de 70
– Colecções da RTP, Fundação Mário Soares, Arquivo Fotográfico de Lisboa
– Estudos académicos em sociologia do vestuário (Universidade de Lisboa, Universidade do Minho)

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