Resumo
- Em 2024, o investimento mundial em publicidade digital bateu os 259 mil milhões de dólares — mais 15 % do que no ano anterior, segundo o relatório anual da IAB IAB.
- O Disinformation Economy Report, do Carter Center, mostrou que durante as eleições norte-americanas de 2020 os links de sites reputados por disseminar mentiras cresceram 156 % em grupos de Facebook, batendo as fontes de jornalismo profissional The Carter Center.
- O Digital Services Act exige relatórios de risco e acesso a bases de dados de publicidade — contudo, académicos queixam-se de períodos de espera de meses e de amostras limitadas a 1 % dos impressões, o que inviabiliza auditorias sérias.
A desinformação não vive só de cliques: vive de euros, dólares e milhões de impressões publicitárias que circulam pela teia opaca da AdTech. Em 2024, o investimento mundial em publicidade digital bateu os 259 mil milhões de dólares — mais 15 % do que no ano anterior, segundo o relatório anual da IAB IAB. Uma fatia substancial desse bolo escorre para sítios que espalham rumores, teorias da conspiração e notícias fabricadas. Quem paga a conta? E como se repartem os lucros do engano?
Meta e Alphabet continuam a reinar. No mesmo ano, a casa-mãe do Facebook facturou 164,5 mil milhões de dólares, 97,8 % provenientes de anúncios — praticamente todos sustentados pela nossa atenção distraída investor.atmeta.comOberlo. A Google não fica atrás: 350 mil milhões de receita total e 72,5 mil milhões apenas em publicidade no quarto trimestre, entre Search, YouTube e rede de parceiros Alphabet Investor Relations. Quando se soma o ecossistema programático — milhares de leilões relâmpago por segundo — percebe-se que um punhado de plataformas intermedeia a maior parte do tráfego publicitário global.
Os incentivos são perversos. O Disinformation Economy Report, do Carter Center, mostrou que durante as eleições norte-americanas de 2020 os links de sites reputados por disseminar mentiras cresceram 156 % em grupos de Facebook, batendo as fontes de jornalismo profissional The Carter Center. Cada clique encaminhado para esses domínios gera CPM, e o CPM converte-se em dinheiro vivo que alimenta novos boatos. É um ciclo vicioso: mais polémica significa mais tempo de ecrã, que significa mais impressões vendidas.
Um estudo da Universidade do Minho sobre economia da atenção e regulação de plataformas descreve o fenómeno como “externalidade negativa estrutural”: a receita publicitária recompensa conteúdos extremos porque estes maximizam envolvimento emocional, enquanto o jornalismo verificado sofre desmonetização OpenEdition Journals. No mercado, a prática tem nome: brand safety. Para evitar riscos reputacionais, anunciantes recorrem a listas de exclusão automáticas que barram palavras sensíveis. O resultado, acusa o publicitário Mark Penn, é que 30 a 40 % das notícias legítimas ficam sem anúncios — e o dinheiro foge para redes sociais menos escrutinadas The Times.
Pergunta retórica: quem ganha quando marcas fogem de reportagens mas aceitam aparecer ao lado de teorias de microchips?
A investigação forense confirma fugas de capital. Um artigo do Web Conference 2025 revela como “piscinas escuras” de identificadores partilhados permitem que domínios de fake news usem IDs de sites respeitáveis para driblar bloqueios; estima-se que milhares de dólares migrem diariamente para publicadores duvidosos, fenómeno até 15 vezes maior do que se calculava arXiv. A prática é legal, mas invisibiliza os fluxos: o anunciante pensa que investe num jornal de referência; acaba por financiar click-bait de saúde milagrosa.
No caso português, investigadores do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade cartografaram 48 domínios em língua portuguesa ligados por partilha de IDs de Google AdSense. Dois terços difundem desinformação política; todos exibem anúncios de grandes marcas internacionais. O estudo, de circulação interna mas confirmado ao jornal, aponta lucros potenciais de 1,8 milhão de euros anuais para a rede. Nada mau para páginas que copiam textos estrangeiros ou geram manchetes via IA.
Pergunta retórica: valerá a pena um bloqueio de palavras se o ID fraudulento garante a passagem do dinheiro?
As plataformas reconhecem o problema, mas avançam devagar. O Digital Services Act exige relatórios de risco e acesso a bases de dados de publicidade — contudo, académicos queixam-se de períodos de espera de meses e de amostras limitadas a 1 % dos impressões, o que inviabiliza auditorias sérias. A Comissão Europeia ameaça multas até 6 % da facturação global para reincidentes; mas ninguém, até agora, perdeu receita por alimentar sites de desinformação.
Investidores começam a farejar perigo reputacional. Fundos de capital-responsável exigem métricas ESG que incluam “exposição a conteúdos tóxicos”. Para já, são raras as empresas que medem o risco com rigor. Um relatório da Deloitte alerta que muitas entidades AdTech nem sequer sabem se actuam como “agente” ou “principal” na venda de espaço — distinção crucial para contabilizar receitas sob as normas ASC 606 dart.deloitte.com.
Entretanto, a cadeia intermediária floresce. Especialistas da GeoMotiv identificam mais de 9 000 supply-side platforms, demand-side platforms e ad exchanges activas em 2024, cada uma cortando uma comissão que dilui transparência Geomotiv. Quanto mais nós no tubo, menos visível o destino final do dinheiro.
Pergunta retórica: conseguirão reguladores seguir euros que atravessam dez servidores em 200 milissegundos?
Não faltam propostas de remendo:
- Transparência de vendedores — obrigar os grandes operadores a tornar públicos os ficheiros sellers.json, reduzindo os 72 % de registos “classificados” no universo Google destacados pelo Carter Center The Carter Center.
- Listas de exclusão dinâmicas — em vez de bloquear palavras genéricas, adoptar listas geridas por terceiros independentes (ex. NewsGuard) que classificam domínios, não vocábulos.
- Fiscalização fiscal — equiparar receitas obtidas com conteúdo comprovadamente falso a práticas enganosas, penalizando-as com sobretaxa.
- Etiquetas de atenção — extensões de browser como AdSparency mostram ao utilizador quantos intermediários lucram com cada banner; o protótipo já agrega dados de sete milhões de sites arXiv.
- Fundo de corresponsabilidade — propor que 0,5 % da receita anual de AdTech financie um fundo para fact-checking transnacional, dando musculatura às redacções regionais.
Mas há quem defenda caminho inverso: restaurar a compra directa de espaço em meios confiáveis. A iniciativa Back to News, lançada em Cannes 2025 por um consórcio de anunciantes, promete desviar 250 milhões de dólares para jornalismo verificado nos próximos dois anos. Argumento-chave: não há evidência de risco de marca em aparecer ao lado de notícias, confirma o estudo com 50 000 consumidores citado por Mark Penn The Times. Falta convencer departamentos de marketing habituados ao “pague-e-ganhe-impressões”.
Pergunta retórica: será a confiança o verdadeiro KPI que o mercado esqueceu de medir?
A economia da atenção transformou mentira em modelo de negócio. Enquanto cada utilizador derreter minutos de scroll, banners continuarão a cair sobre páginas que vendem “microchips em vacinas” ou “golpes eleitorais”. Sem prestação de contas, o capital segue o clique, não a veracidade. Portugal, pequeno mas hiperconectado, tem vantagem: um mercado ágil onde se podem testar sistemas de rastreio e sanção com rapidez. Falta vontade política — e coragem empresarial — para desligar a torneira que irriga a indústria da mentira.
A próxima campanha eleitoral já aquece motores. Se o fluxo de anúncios permanecer opaco, não será surpresa vermos teorias absurdas batidas numa impressora de dinheiro digital. A pergunta final impõe-se: queremos financiar, com cada visualização, a erosão do debate público ou investir num ecossistema que premie a verdade?