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Resumo

  • “Romper com a neutralidade é educar para a justiça, é nomear o opressor e o oprimido, é ensinar a história da Palestina sem filtros coloniais”, afirma o professor Salim Kaddouri, da Universidade Nova de Lisboa.
  • Escolas, universidades, bibliotecas e centros culturais são chamados a promover programas de consciencialização, a divulgar vozes palestinianas, a rejeitar convites de instituições cúmplices e a assumir um papel activo na construção de uma memória justa.
  • Tal como aconteceu com o apartheid sul-africano ou com a resistência ao colonialismo europeu, o que está em causa é a afirmação de que todos os povos têm direito à dignidade, à terra, à liberdade e à vida.

A neutralidade já não é opção. Diante da catástrofe humanitária em Gaza e da opressão prolongada do povo palestiniano, cresce o apelo internacional para que governos, instituições e cidadãos tomem uma posição clara. A exigência é inequívoca: romper o silêncio, condenar o apartheid israelita e agir para pôr fim ao genocídio.

Ao longo das últimas décadas, a diplomacia ocidental tem oscilado entre apelos à “moderação” e um apoio material e ideológico à ocupação. A linguagem do “conflito complexo”, da “ambiguidade trágica” ou da “equidistância” tem servido, na prática, para proteger Israel de qualquer responsabilização real. Mas a violência de 2023-2025, marcada por bombardeamentos massivos, fome forçada e destruição sistemática, desfez o véu de imparcialidade.

“Não tomar partido é escolher o lado do opressor”

A frase do escritor Desmond Tutu, figura central na luta contra o apartheid sul-africano, voltou a ecoar em protestos por todo o mundo. Para muitos activistas, o tempo da “neutralidade diplomática” terminou. “O que está em causa não é um diferendo geopolítico, mas a sobrevivência de um povo sob um regime de ocupação, colonização e apartheid”, afirma a historiadora Rita Gomes, autora do livro Territórios Silenciados: Palestina e Colonialismo.

Organizações como a Amnistia Internacional, a Human Rights Watch e a própria ONU classificam, desde 2022, o sistema israelita como um regime de apartheid. A hesitação dos Estados ocidentais em usar essa linguagem não se deve à falta de factos — mas à escolha consciente de não romper com Israel.

A urgência de compromissos políticos concretos

A retórica humanitária é insuficiente. A sociedade civil exige medidas efectivas: sanções, embargos de armas, suspensão de acordos económicos e responsabilização internacional de crimes de guerra. A União Europeia, apesar das suas proclamações em defesa dos direitos humanos, mantém um acordo de associação comercial com Israel, que garante vantagens económicas mesmo em contexto de crimes internacionais.

Portugal, por exemplo, continua a colaborar com o sector militar e de segurança israelita, através de contratos públicos, intercâmbios académicos e parcerias tecnológicas. Em 2024, o governo português absteve-se na votação da resolução da ONU que reconhecia formalmente o genocídio em Gaza. Essa abstenção foi criticada por mais de 200 académicos, 40 organizações da sociedade civil e dezenas de artistas portugueses.

Cidadania activa: do boicote ao voto

A exigência de coerência política não se dirige apenas aos Estados. Vários movimentos defendem que cidadãos e cidadãs devem usar todos os meios democráticos ao seu alcance — desde o boicote a produtos de empresas cúmplices da ocupação, à pressão sobre representantes políticos, passando pela acção directa não violenta.

Nas eleições europeias de 2024, o tema da Palestina entrou na agenda de forma inédita. Em países como a Bélgica, Irlanda, Espanha ou França, partidos e candidatos que tomaram posição clara contra a ocupação viram crescer o seu apoio eleitoral. Em Portugal, activistas exigem agora um compromisso parlamentar formal para rever todas as relações com o Estado de Israel enquanto este violar o direito internacional.

O papel da cultura, da educação e da memória

A transformação política exige também uma mudança cultural. “Romper com a neutralidade é educar para a justiça, é nomear o opressor e o oprimido, é ensinar a história da Palestina sem filtros coloniais”, afirma o professor Salim Kaddouri, da Universidade Nova de Lisboa. “Não se trata de ódio — trata-se de verdade.”

Escolas, universidades, bibliotecas e centros culturais são chamados a promover programas de consciencialização, a divulgar vozes palestinianas, a rejeitar convites de instituições cúmplices e a assumir um papel activo na construção de uma memória justa.

Uma questão de humanidade

A luta pelo fim da ocupação da Palestina não é apenas uma causa árabe, islâmica ou regional. É uma questão de justiça universal. Tal como aconteceu com o apartheid sul-africano ou com a resistência ao colonialismo europeu, o que está em causa é a afirmação de que todos os povos têm direito à dignidade, à terra, à liberdade e à vida.

Como escreveu Angela Davis, filósofa e activista afro-americana: “A Palestina ensina-nos que a liberdade é indivisível — ou é para todos, ou não é para ninguém.”

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