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Resumo

  • Bloqueios que provocam fome, cortes de água e eletricidade, destruição sistemática de infraestruturas civis — quando dirigidos à população por atos alheios — são incompatíveis com a letra e o espírito da Convenção.
  • Atribuir a um bairro, a uma escola ou a um hospital a culpa pelos crimes de um grupo armado perverte o direito e castiga inocentes.
  • Um ataque que, isoladamente, pareça “proporcional” pode — somado a um padrão de destruição de serviços essenciais, obstrução de ajuda e retórica desumanizante — contribuir para uma alegação plausível de genocídio, como salientado no enquadramento jurídico citado.

Porque responsabilizar 2,3 milhões de civis por atos de um grupo armado é erro jurídico, político e moral

Quando? Desde outubro de 2023. Onde? Na Faixa de Gaza e no debate global. Quem? Autoridades, comentadores e decisores que confundem um povo com um grupo armado. O quê? A narrativa da culpabilidade coletiva — que equipara os civis de Gaza ao Hamas e justifica punições de larga escala. Porquê? Para legitimar operações e sanções que atingem toda a população. Como? Através de uma confusão deliberada entre conceitos jurídicos: terrorismo, genocídio, direito humanitário e antissemitismo. O resultado é devastador para a verdade e para a proteção de vidas. É tempo de pôr ordem nas palavras — e nos factos.

O erro de partida: atos não são identidades
O direito internacional define terrorismo por atos e intenções concretas (matar civis, tomar reféns, provocar terror), não por identidades nacionais ou religiosas. A categoria jurídica recai sobre comportamentos, não sobre povos. Confundir “palestinianos” com “terroristas” dissolve a responsabilidade individual e abre a porta à punição coletiva — uma prática expressamente proibida pelo Direito Internacional Humanitário (DIH). O documento-base desta série é claro: terrorismo descreve crimes, não comunidades; a crítica a políticas estatais não é ódio religioso; apoio humanitário não é apologia do terror. Distinguir é obrigação ética e legal.

O princípio da distinção, pedra angular do DIH, obriga as partes a separar sempre civis e combatentes, bens civis e alvos militares. Atacar diretamente civis é crime de guerra. A distinção articula-se com a proporcionalidade (proibir danos incidentais excessivos face à vantagem militar concreta) e com o dever de precaução (minimizar riscos aos civis). Sem estes travões, a guerra torna-se caça indiscriminada. Podemos normalizar isso?

A regra que não admite atalhos: proibição de punição coletiva
O Artigo 33 da IV Convenção de Genebra veda penas coletivas, intimidações ou medidas de “terrorismo” contra pessoas protegidas. Não é uma nota de rodapé; é um limite duro. Bloqueios que provocam fome, cortes de água e eletricidade, destruição sistemática de infraestruturas civis — quando dirigidos à população por atos alheios — são incompatíveis com a letra e o espírito da Convenção. Atribuir a um bairro, a uma escola ou a um hospital a culpa pelos crimes de um grupo armado perverte o direito e castiga inocentes. A lei não conhece culpa por contágio.

Repare o absurdo: metade da população de Gaza são crianças. Responsabilizá-las por decisões do Hamas é um non sequitur moral. A proteção de civis não depende da simpatia política do observador; decorre do seu estatuto de não combatente. O DIH protege pessoas, não ideias. É isso que distingue civilização de barbárie.

“Autodefesa” não é salvo-conduto
Estados têm direito a defender-se de ataques armados. Mas o direito de autodefesa não derroga o DIH nem neutraliza o escrutínio de intenção quando há alegações de genocídio. Um ataque que, isoladamente, pareça “proporcional” pode — somado a um padrão de destruição de serviços essenciais, obstrução de ajuda e retórica desumanizante — contribuir para uma alegação plausível de genocídio, como salientado no enquadramento jurídico citado. A análise é cumulativa, não episódica; foca resultado e contexto, não slogans.

É por isso que o Tribunal Internacional de Justiça impôs medidas para prevenir violações da Convenção do Genocídio e garantir assistência humanitária, reconhecendo risco plausível. A comunidade internacional tem um dever de prevenção, não de neutralidade passiva. O silêncio, aqui, pesa. E pesa contra quem?

Fact-check: três ideias feitas — e a realidade
“Todos em Gaza apoiam o Hamas.”
Falso. A população é heterogénea em crenças e preferências políticas; inclui opositores do Hamas, independentes e, sobretudo, crianças sem participação política. A responsabilização é sempre individual no direito penal internacional. Atribuir culpa coletiva é estigma, não prova.

“A ajuda humanitária alimenta o terrorismo.”
Sem fundamento quando se fala de UNRWA e OCHA, cuja missão é estritamente humanitária: educação, saúde primária, abrigos, coordenação de socorro. Apoiar esse trabalho é defender princípios de humanidade, imparcialidade, neutralidade e independência, não qualquer fação. Cortar ajuda pune civis e agrava o conflito.

“Criticar Israel é antissemitismo.”
Errado. Crítica a políticas de Estado é legítima e necessária numa democracia; antissemitismo é ódio e discriminação contra judeus enquanto judeus. Confundir ambos sabota o combate ao ódio real e limita a liberdade académica e cívica — o chamado efeito de arrefecimento descrito no relatório.

O que o direito nos pede — e a política teima em não ouvir
O direito humanitário não premia a pureza dos fins, mas limita os meios. “Lutar contra o terrorismo” não autoriza matar civis, destruir hospitais ou bloquear alimentos. Proporcionalidade e precaução não são ornamentos; são obrigações. E quando o risco de genocídio é declarado plausível por um tribunal internacional, o dever de prevenir ativa-se para todos os Estados. Não é favor; é mandato.

E aqui chegamos ao centro ético da questão: solidariedade com civis palestinianos não equivale a apoio ao Hamas; condenação do terrorismo não equivale a licença para punir um povo. Dizer “Gaza não é o Hamas” não é slogan, é chave de leitura para salvar vidas e defender a legalidade internacional. Sem essa chave, tudo se torna ruído — e, no ruído, quem morre são os inocentes.

Política com bússola: caminhos concretos
Cessar práticas de punição coletiva: abrir corredores de ajuda, restaurar serviços essenciais, proteger escolas, padarias, hospitais.

Reforçar UNRWA/OCHA com financiamento e garantias de segurança no terreno; auditar quando necessário, sem paralisar socorro.

Responsabilização individual: investigação e julgamento de crimes, seja de grupos armados, seja de forças estatais — sem exceções.

Proteção da liberdade académica e de expressão: universidades e meios noticiosos devem resistir ao arrefecimento e defender o debate informado.

Diplomacia de prevenção: aplicar o dever convencional de impedir o genocídio quando o risco é plausível, usando a pressão política e jurídica disponível.

Sem distinções claras, a discussão degrada-se; com distinções firmes, a lei respira e a humanidade reentra no centro da política. Gaza não é o Hamas — e nunca foi. Esta é a linha vermelha que separa a justiça do castigo cego. Ignorá-la tem custo de sangue… e de futuro. 💧

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