Resumo
- A disputa sobre onde termina a crítica a Israel e começa o antissemitismo.
- A União Europeia adotou, em 2021, a primeira estratégia para combater o antissemitismo e promover a vida judaica, incentivando Estados e instituições a reconhecer e enfrentar o problema.
- relatórios do Congresso e orientações federais instam a considerar a IHRA na análise de casos em escolas e universidades.
Investigação às definições, pressões políticas e casos que confundem ódio a judeus com escrutínio legítimo a um Estado
Quem? Governos, universidades, organizações judaicas e grupos de direitos humanos. O quê? A disputa sobre onde termina a crítica a Israel e começa o antissemitismo. Onde? EUA, Europa e campus universitários. Quando? De 2016 até 2025, com pico após a guerra em Gaza. Porquê? Definições concorrentes, clima político e medo reputacional. Como? Adoção da definição IHRA, contestação da JDA, investigações e cortes de financiamento. O resultado? Um efeito de arrefecimento no debate público — com custos para a luta real contra o ódio.
IHRA e JDA: duas rotas para a mesma pergunta
A IHRA propõe uma “definição de trabalho” sucinta: antissemitismo é “uma certa percepção dos judeus, que pode expressar-se como ódio”, acompanhada de 11 exemplos, sete deles relacionados com Israel (como negar o direito à autodeterminação, comparar políticas israelitas ao nazismo ou aplicar “dois pesos e duas medidas”). É não-vinculativa, mas tornou-se referência para governos e reitorias.
A Jerusalem Declaration on Antisemitism (JDA) nasce em reação crítica: sustenta critérios para identificar antissemitismo e, novidade crucial, lista exemplos do que não é antissemitismo “à partida”, como apoiar o BDS ou criticar o sionismo quando feito em termos comparáveis aos usados contra outros Estados. O objetivo declarado é proteger a crítica política sem desarmar o combate ao ódio antijudaico.
Em comum, ambas rejeitam agressões e insultos antijudaicos. Divergem no margem de manobra para falar de Israel. É aí que a política entra — e onde o risco de censura cresce. Não estaremos a tratar análise política como crime de opinião?
Europa e EUA: normas, estratégias e uma fronteira por desenhar
A União Europeia adotou, em 2021, a primeira estratégia para combater o antissemitismo e promover a vida judaica, incentivando Estados e instituições a reconhecer e enfrentar o problema. A documentação da Comissão não impõe uma única definição jurídica, mas a IHRA é frequentemente referida como instrumento prático. Ao mesmo tempo, organizações de direitos humanos alertam: conflacionar crítica a Israel com antissemitismo atrapalha a proteção real das comunidades judaicas.
Nos EUA, a discussão ganhou musculatura regulatória via Title VI: relatórios do Congresso e orientações federais instam a considerar a IHRA na análise de casos em escolas e universidades. Em 2025, o Departamento de Educação abriu vagas de investigação e advertiu dezenas de campus, num ambiente de grande pressão após protestos sobre Gaza. A mensagem política é inequívoca: tolerância zero ao antissemitismo — mas com linhas de fronteira pouco claras quando a crítica incide no Estado de Israel.
Portugal observa, mas não está imune. A importação acrítica de pacotes normativos e modelos anglo-saxónicos para o nosso ensino superior pode replicar problemas sem resolver o essencial: proteger judeus de discriminação e, em simultâneo, proteger a liberdade académica. Onde está o equilíbrio?
Campus sob pressão: investigações, autocensura e medo
Universidades do Reino Unido adotaram a IHRA com o apoio de “guides” operacionais que prometem acolher melhor queixas e sinalizar incidentes com mais consistência. Para os sindicatos estudantis de raízes judaicas, é um passo de confiança. Para investigadores de direitos humanos, o diabo está nos detalhes: exemplos sobre Israel são usados, por vezes, como atalho para punir slogans e análises políticas, sem prova de intenção antijudaica. Resultado? Autocensura. E silêncio.
Nos EUA, a combinação de queixas, audiências no Congresso e investigações federais produz um ambiente “frio”: departamentos evitam seminários sobre Gaza; docentes substituem termos; convites são retirados à última hora. Estudos e barômetros de liberdade académica apontam que a disputa em torno da IHRA é vetor central dessa pressão. Em paralelo, associações de professores denunciam despedimentos e processos disciplinares com racionalizações frágeis. A fronteira entre proteção e instrumentalização esbate-se.
A pergunta impõe-se: protegeremos melhor as comunidades judaicas calando o debate, ou separando cuidadosamente ódio a judeus de crítica a um governo?
Quando as palavras pesam: distinções jurídicas que contam
O relatório “Distinção: Gaza, Genocídio, Terrorismo, Antissemitismo” — base desta série — lembra o essencial:
- Antissemitismo é ódio e discriminação contra judeus enquanto judeus.
- Terrorismo descreve atos e intenções, não povos.
- Direito Internacional Humanitário impõe distinção entre civis e combatentes, proíbe punição coletiva e exige proporcionalidade e precaução.
- O dever de prevenir genocídio corresponde a todos os Estados quando o risco é considerado plausível por um tribunal internacional.
Confundir estes planos corrói a precisão e a justiça. Ao etiquetar como “antissemitismo” a crítica a bombardeamentos, bloqueios ou anexações, esvazia-se a categoria jurídica de ódio racial e banaliza-se o perigo real que judeus enfrentam. Ao mesmo tempo, cria-se um escudo político para políticas estatais. É essa a “linha vermelha manipulada” que investigamos!
O contra-argumento: por que muitos defendem a IHRA
Organizações judaicas e conselhos acadêmicos relatam subidas reais de insultos, vandalismo e ameaças — online e no terreno — desde outubro de 2023. Para quem vive isso, a IHRA oferece uma linguagem comum, reconhecida por governos e polícias, para agir com rapidez. A Universities UK defende que a adoção da IHRA “inspira confiança” e orienta investigações internas de forma previsível. Essas vozes lembram que a vida judaica na Europa precisa de segurança, não de debates infindáveis sobre semântica.
Críticos, porém, sublinham: a JDA também combate o antissemitismo e, ao clarificar o que não é antissemitismo, protege a liberdade de expressão. A própria ONU teve especialistas a alertar para o risco de incompatibilidades com padrões internacionais de direitos humanos quando a IHRA é aplicada de forma extensiva. O ponto não é relativizar o ódio, mas apontar a arma certa ao alvo certo.
Casos-tipo: da denúncia legítima ao “atalho punitivo”
- Slogans e cartazes: expressões ambíguas são lidas como incitamento, sem análise de contexto e intenção. Solução jornalística? Verificar conteúdo, autor, alvo e circunstâncias antes de colar o selo “antissemitismo”.
- Eventos acadêmicos: debates sobre direito internacional em Gaza cancelados por “risco reputacional”. A consequência é dupla: cala-se a crítica e perde-se a oportunidade de contraditório informado.
- Queixas disciplinares: procedimentos internos citam exemplos IHRA sobre Israel de modo isolado, sem aferir se há ódio a judeus ou apenas censura a políticas de Estado.
Este padrão não elimina antissemita algum. Mas afasta investigadores, divide campus e enfraquece a confiança do público em sanções bem fundadas.
O que dizem as estratégias públicas — e o que falta dizer
As estratégias europeias afirmam objetivos consensuais: prevenir todas as formas de antissemitismo e fomentar a vida judaica. Certo. Falta, porém, um guia operacional que separe com nitidez crítica a Israel e antissemitismo, para que entidades formadoras, forças de segurança e reguladores não criminalizem o que a lei não criminaliza. Em termos práticos: formação obrigatória, protocolos de avaliação de contexto e proteção do contraditório nos campus.
Sem esse travão, o debate degrada-se em trincheiras. E o antissemitismo real — insultos, agressões, profanação de sinagogas — passa no meio do ruído.
Metodologia desta investigação
Analisámos documentos normativos (IHRA, JDA), relatórios e guias de universidades, relatórios de direitos humanos e bases de casos recentes em campus. Confrontámos as leituras com o quadro jurídico do relatório “Distinção: Gaza, Genocídio, Terrorismo, Antissemitismo”. O padrão é consistente: a conflacção é frequente, e a precisão é o melhor antídoto — para proteger judeus e a liberdade académica.
Cinco medidas para desarmar a manipulação — e proteger todos
- Dupla referência: usar IHRA e JDA em paralelo nas universidades, com formação sobre diferenças e limites.
- Teste de intenção e contexto: antes de sancionar, provar ódio a judeus, não mera crítica a Israel.
- Canal seguro para denúncias: proteger estudantes judeus e punir abusos reais, com prazos e transparência.
- Contraditório obrigatório: nenhum cancelamento sem audiência e parecer jurídico independente.
- Monitorização pública: publicar estatísticas que distingam antissemitismo, xenofobia genérica e crítica política.
O objetivo é simples e ambicioso: tolerância zero ao antissemitismo e tolerância máxima ao debate democrático. Sem muros semânticos nem atalhos punitivos. Porque justiça sem liberdade é medo; liberdade sem justiça é ruído. E não queremos viver entre ruídos.