Resumo
- Entre os dispositivos chumbados estão o novo regime de autorização de residência, a introdução de prazos mais apertados para pedidos e recursos, e a revogação tácita de direitos adquiridos por imigrantes já em território nacional.
- Já o partido Chega, pela voz de André Ventura, classificou a decisão como “uma vergonha nacional” e prometeu apresentar uma proposta de revisão constitucional que “reforçe o poder do Governo para defender as fronteiras e a segurança dos portugueses”.
- Do outro lado do espectro político, Mariana Mortágua (BE) saudou a decisão do Tribunal e alertou para o “perigo de uma normalização do discurso de exclusão e criminalização dos imigrantes”, enquanto Paulo Raimundo (PCP) defendeu “uma política migratória assente em direitos, integração e justiça social”.
Lisboa, 08 ago 2025 — O Tribunal Constitucional travou o que seria uma das maiores alterações à política migratória portuguesa das últimas décadas. O chumbo do Decreto-Lei n.º 4/2024, conhecido como “Lei Mais Estrangeiros”, marca um embate direto entre o executivo e a Constituição, reacendendo o debate sobre os limites da governação em matérias sensíveis como a imigração e os direitos humanos.
A decisão, proferida por maioria, declarou inconstitucionais vários artigos da lei aprovada em Conselho de Ministros em janeiro, por violação de princípios fundamentais como o da igualdade, da segurança jurídica e do direito à proteção jurisdicional efectiva. Entre os dispositivos chumbados estão o novo regime de autorização de residência, a introdução de prazos mais apertados para pedidos e recursos, e a revogação tácita de direitos adquiridos por imigrantes já em território nacional.
Segundo o acórdão, a norma que previa a caducidade automática dos pedidos pendentes ao fim de 90 dias “poderia traduzir-se numa negação do acesso ao direito, em violação clara do artigo 20.º da Constituição”. O Tribunal considerou ainda que o diploma impunha obrigações desproporcionadas a cidadãos estrangeiros em situação legal, tratando-os como “potenciais infractores” e esvaziando de eficácia o princípio da confiança legítima.
Um braço-de-ferro entre Palácio de Belém e São Bento
O decreto-lei, promovido pelo Ministério da Administração Interna e apoiado pela maioria parlamentar, foi alvo de críticas desde a sua apresentação. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, enviou o diploma para fiscalização preventiva, alegando dúvidas quanto à sua conformidade constitucional. O Tribunal deu-lhe razão.
Fontes próximas da Presidência sublinharam que “não está em causa o controlo migratório”, mas sim “o respeito pelas garantias mínimas de qualquer pessoa perante o Estado de Direito”. Já o Governo considerou a decisão “um entrave à implementação de uma política migratória mais eficaz” e prometeu apresentar uma nova versão “em respeito pela Constituição, mas com os mesmos objectivos”.
Questionado sobre o impacto da decisão, o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia afirmou ao Público que “o Tribunal foi claro: não se pode legislar como se a Constituição fosse um detalhe”. Para o professor da Universidade Nova de Lisboa, o chumbo “representa uma vitória do Estado de Direito num momento de grande tensão política”.
Direitos humanos ou populismo securitário?
Associações de defesa dos direitos dos migrantes, como a Solidariedade Imigrante e o CPR, aplaudiram o chumbo, acusando o diploma de ser “xenófobo na forma e autoritário no conteúdo”. Em comunicado, a ONG SOS Racismo disse tratar-se de “um exemplo preocupante de legislação feita à pressa, sob pressão mediática, sem respeito pelos compromissos internacionais de Portugal em matéria de direitos humanos”.
Já o partido Chega, pela voz de André Ventura, classificou a decisão como “uma vergonha nacional” e prometeu apresentar uma proposta de revisão constitucional que “reforçe o poder do Governo para defender as fronteiras e a segurança dos portugueses”.
Do outro lado do espectro político, Mariana Mortágua (BE) saudou a decisão do Tribunal e alertou para o “perigo de uma normalização do discurso de exclusão e criminalização dos imigrantes”, enquanto Paulo Raimundo (PCP) defendeu “uma política migratória assente em direitos, integração e justiça social”.
AIMA sem rumo, imigrantes no limbo
Na prática, a rejeição do diploma deixou a recém-criada Agência para a Imigração e Mobilidade (AIMA) sem base legal para várias das suas funções. “Estamos a trabalhar com um quadro jurídico anterior, que não responde às necessidades actuais”, admitiu um dirigente da AIMA sob anonimato. Mais de 180 mil processos de regularização estão em curso, muitos deles em situações de incerteza jurídica.
Os imigrantes são os principais afectados. “Fiz tudo certo, entreguei os documentos a tempo, paguei taxas… Agora dizem que talvez tenha de recomeçar o processo?”, desabafa Meena, cidadã nepalesa à espera de autorização de residência desde 2023.
Organizações da sociedade civil têm exigido uma moratória legal e um regime de excepção para proteger os imigrantes apanhados no impasse.
O que vem a seguir?
O Governo já anunciou a intenção de rever o diploma, mas especialistas alertam que o novo texto terá de respeitar os limites constitucionais agora reafirmados. “Não basta mudar a linguagem. É necessário mudar o paradigma: tratar a imigração como fenómeno humano e estrutural, não como problema de segurança”, defendeu José Leitão, antigo Provedor-Adjunto da Justiça.
O caso deverá marcar a rentrée política de Setembro e será, certamente, um teste à coesão da maioria parlamentar e à relação entre Belém e São Bento. Numa altura em que o debate sobre imigração ganha força em toda a Europa, Portugal vê-se confrontado com a necessidade de repensar o seu modelo — sem esquecer que, no centro do debate, estão pessoas.