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Resumo

  • A fronteira entre a defesa contra o ódio e a censura da crítica política ficou borrada.
  • Este documento, adotado por governos e universidades, classifica como exemplo de antissemitismo “negar o direito do povo judeu à autodeterminação”, incluindo a ideia de que Israel é um projeto racista .
  • A JDA separa hostilidade contra judeus de críticas a Israel e reconhece que apoiar boicotes ou propor soluções alternativas ao modelo de dois Estados não é, por si só, antissemitismo.

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Quando a crítica vira tabu: o legado ambíguo de Abba Eban sobre sionismo e antissemitismo

Abba Eban foi um diplomata israelita que desempenhou cargos centrais nas décadas de 1950 a 1970. Representou Israel nas Nações Unidas, em Washington e foi ministro dos Negócios Estrangeiros. O seu papel mais duradouro, porém, não esteve apenas nas negociações internacionais, mas na construção de uma narrativa que continua a condicionar o debate público: a identificação entre anti-sionismo e antissemitismo .

Nos anos 1970, Eban afirmou repetidamente que criticar a existência de Israel equivalia a hostilidade contra os judeus. Em 1973, escreveu no Congress Bi-Weekly que “anti-sionismo é apenas o novo antissemitismo”. Em 1975, no New York Times, reforçou que “não há qualquer diferença entre negar a cidadania aos judeus e negar o direito de Israel existir como Estado” . Estas declarações surgiram em plena preparação da Resolução 3379 da ONU, que viria a considerar o sionismo como uma forma de racismo.

A estratégia de fusão entre crítica e preconceito

A lógica era direta: se o antissemitismo é universalmente condenado, então fundir anti-sionismo com preconceito anti-judaico permitiria deslegitimar críticas a Israel. A manobra cumpria dois objetivos: neutralizar a pressão diplomática e colocar comunidades judaicas na diáspora perante um dilema de lealdade .

O resultado foi eficaz a curto prazo, mas produziu um legado problemático. A fronteira entre a defesa contra o ódio e a censura da crítica política ficou borrada. Questionar a ocupação de territórios ou denunciar práticas discriminatórias passou a ser visto, em muitos círculos, como ato antissemita. O espaço de debate reduziu-se.

Da retórica de Eban às definições atuais

As posições de Eban anteciparam a definição de antissemitismo da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA). Este documento, adotado por governos e universidades, classifica como exemplo de antissemitismo “negar o direito do povo judeu à autodeterminação”, incluindo a ideia de que Israel é um projeto racista . Para críticos como Noam Chomsky, tal lógica transforma a luta contra o preconceito numa arma para restringir o debate político.

A contestação gerou a Declaração de Jerusalém sobre Antissemitismo (JDA), assinada em 2021 por centenas de académicos. A JDA separa hostilidade contra judeus de críticas a Israel e reconhece que apoiar boicotes ou propor soluções alternativas ao modelo de dois Estados não é, por si só, antissemitismo. O contraste entre IHRA e JDA mostra como a herança de Eban continua a gerar divisões.

Identidade comunitária e vigilância discursiva

Ao colocar o apoio a Israel como critério de pertença, Eban cristalizou um mecanismo de exclusão: judeus críticos passaram a ser catalogados como “auto-odiantes”, uma etiqueta que deslegitima posições dissidentes . Esta lógica alimentou divisões internas e reforçou a vigilância discursiva dentro e fora das comunidades judaicas.

Hoje, em campus universitários, sindicatos ou parlamentos europeus, os efeitos são visíveis. Académicos evitam discutir a política israelita por receio de acusações. Estudantes pró-palestinianos relatam perseguições disciplinares. O resultado é um “efeito silenciador” que afeta a liberdade de expressão e o debate democrático.

Tabu ou debate democrático?

A luta contra o antissemitismo é indispensável, sobretudo face ao crescimento da extrema-direita. Mas será aceitável usar esse combate para proteger um Estado de críticas políticas? Não será contraditório confundir preconceito com dissenso?

O legado de Abba Eban é, acima de tudo, a criação de uma ferramenta política que transformou crítica em tabu. Meio século depois, permanece a questão central: queremos sociedades capazes de discutir Israel e Palestina livremente ou preferimos manter um silêncio imposto por acusações automáticas de antissemitismo? A resposta moldará não apenas o futuro do Médio Oriente, mas também a qualidade das nossas democracias.

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