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Resumo

  • Na verdade, há um crescente movimento global de dissidência judaica que contesta frontalmente o sionismo e a narrativa que identifica o Estado de Israel com o povo judeu no seu todo.
  • Como alerta o relatório “Crítica a Israel e a Acusação de Antissemitismo”, ao confundir-se política de Estado com pertença religiosa, corre-se o risco de silenciar vozes legítimas e de desfigurar o próprio conceito de antissemitismo.
  • Dentro de Israel, organizações como a B’Tselem e o grupo Physicians for Human Rights – Israel publicaram relatórios devastadores que classificam a ocupação e o bloqueio de Gaza como crimes contra a humanidade.

Judeus antissionistas expõem a falácia que equipara crítica a Israel com antissemitismo, abrindo caminho a um debate mais livre, plural e honesto sobre o Médio Oriente.

Em Manhattan, manifestantes judeus seguram cartazes com letras negras sobre fundo branco: “Not in our name”, “Jews say: Ceasefire now”, “Diaspora Jews against apartheid”. Do outro lado do Atlântico, em Londres, rabinos ortodoxos da Neturei Karta marcham em silêncio, enrolados nos seus talits, com placas onde se lê: “Judeus autênticos rejeitam o Estado sionista”. Ao contrário do que muitos pensam — e muitos outros preferem esconder — nem todos os judeus apoiam Israel. Na verdade, há um crescente movimento global de dissidência judaica que contesta frontalmente o sionismo e a narrativa que identifica o Estado de Israel com o povo judeu no seu todo.

Esta dissidência, longe de ser uma anomalia marginal, representa uma força intelectual e política cada vez mais relevante. Desmente o mito da homogeneidade comunitária e, ao fazê-lo, desafia um dos pilares da retórica institucional israelita: o uso da identidade judaica como escudo contra a crítica internacional. Como alerta o relatório “Crítica a Israel e a Acusação de Antissemitismo”, ao confundir-se política de Estado com pertença religiosa, corre-se o risco de silenciar vozes legítimas e de desfigurar o próprio conceito de antissemitismo.

O que é ser judeu antissionista?
A crítica interna judaica a Israel não é nova, mas ganhou tração nos últimos anos com o agravamento da situação na Palestina e a radicalização dos governos israelitas. O antissionismo judaico assume formas distintas. Há quem o fundamente em princípios religiosos, como os Neturei Karta, que consideram a existência de Israel uma violação da Torah, pois, segundo a sua leitura, o exílio só pode ser terminado pelo Messias. E há quem o formule politicamente, como a Jewish Voice for Peace (JVP), que denuncia o apartheid, defende os direitos palestinianos e apoia abertamente o movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções).

A JVP, com sede nos Estados Unidos e dezenas de milhares de membros, afirma que “o sionismo, tal como praticado pelo Estado de Israel, é um movimento colonial de colonização de povoamento”. No seu manifesto, rejeita qualquer associação automática entre judaísmo e apoio a Israel, sublinhando que “não em nosso nome” deve significar, precisamente, a ruptura com a instrumentalização da identidade judaica para fins militares e expansionistas.

No plano intelectual, nomes como Noam Chomsky, Norman Finkelstein e Ilan Pappé têm sido figuras centrais na desconstrução da retórica oficial israelita. Finkelstein, cujo livro A Indústria do Holocausto continua a provocar polémica, afirma que “a acusação de antissemitismo tornou-se uma arma de dissuasão contra qualquer crítica substantiva a Israel”. Pappé, historiador israelita radicado no Reino Unido, fala abertamente de “limpeza étnica” e questiona a fundação do Estado em 1948 como um processo de injustiça original.

O sionismo é judaico?
Aqui reside uma das questões mais espinhosas do debate contemporâneo: o sionismo — entendido como ideologia nacionalista e expansionista — é representativo do judaísmo? A resposta, como quase tudo nesta matéria, depende do ponto de vista. Para os defensores da IHRA (International Holocaust Remembrance Alliance), qualquer negação do direito de Israel à existência é, por definição, antissemitismo. No entanto, como expõe o relatório analisado, essa leitura é perigosamente redutora. Ignora o contexto histórico e apaga deliberadamente as divisões internas do próprio povo judeu.

Alternativas como a Declaração de Jerusalém sobre Antissemitismo (JDA) e o Documento Nexus foram desenvolvidas precisamente para oferecer uma definição mais rigorosa e justa, que separe o ódio racial ou religioso da crítica política. Ambas reforçam que criticar Israel, contestar o sionismo ou apoiar o BDS não são formas de antissemitismo, desde que não se baseiem em estereótipos ou em ódio anti-judaico.

Dissidência também em Israel
A dissidência judaica não está limitada à diáspora. Dentro de Israel, organizações como a B’Tselem e o grupo Physicians for Human Rights – Israel publicaram relatórios devastadores que classificam a ocupação e o bloqueio de Gaza como crimes contra a humanidade. Em declarações recentes, B’Tselem foi ainda mais longe, apontando para uma possível prática de genocídio.

Estes grupos são acusados de “traição” pelo governo de Netanyahu e pela direita israelita, mas continuam o seu trabalho com rigor documental e integridade cívica. A própria existência destes colectivos prova que a sociedade israelita está longe de ser monolítica. Ainda assim, o preço da dissidência é alto: perda de financiamento, difamações públicas, ameaças de morte.

Porquê esta pauta importa agora?
A intensificação do conflito em Gaza, o caso África do Sul vs. Israel no Tribunal de Haia, e o endurecimento de leis repressivas nos EUA e Europa — onde críticas a Israel têm sido rotuladas de discurso de ódio — tornam urgente esta reflexão. Identificar a crítica ao Estado de Israel com antissemitismo não apenas distorce os factos como banaliza o conceito. Pior: esvazia-o de sentido, dificultando a luta contra o verdadeiro antissemitismo, que continua a matar, a discriminar e a ferir judeus por todo o mundo.

Ouvir os judeus que se opõem a Israel é essencial para restaurar o debate honesto. Eles são a prova viva de que o judaísmo, como qualquer tradição religiosa ou cultural, não é um bloco único, nem um instrumento de propaganda. O pluralismo dentro do próprio povo judeu é a melhor resposta a quem pretende monopolizar o discurso, silenciar críticos e blindar um Estado sob a capa da religião.

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