Resumo
- Segundo a decisão da Comissão Europeia, entre 2018 e 2022, a Delivery Hero e a Glovo celebraram uma série de acordos informais com o objectivo de não se “roubarem” mutuamente trabalhadores, evitando guerras de preços e salários mais competitivos.
- “O que aconteceu foi uma captura do mercado de trabalho por empresas que fingem não ser empregadoras, mas que agem como tal quando se trata de manter o controlo”, explica Rita Mendes, jurista especializada em direito da concorrência e professora na Universidade Nova de Lisboa.
- A ausência de uma terceira grande plataforma de entregas criou uma falsa sensação de escolha, enquanto as duas dominantes impuseram regras cada vez mais restritivas aos estafetas — com penalizações opacas, critérios de desempenho impenetráveis e um sistema de recompensas que favorece a fidelização acrítica à app.
Num dos mais sonoros casos antitruste dos últimos anos, a Comissão Europeia aplicou, em Julho de 2024, uma multa de 329 milhões de euros à Delivery Hero e à Glovo. A acusação? Formação de um cartel digital destinado a limitar a concorrência e controlar artificialmente o mercado da entrega de refeições em sete países da União Europeia. Em Portugal, as consequências foram menos visíveis, mas igualmente devastadoras: menos alternativas para os consumidores e um mercado laboral enredado em práticas abusivas.
Este episódio revelou as entranhas de um sector que, embora operando sob a capa da inovação tecnológica, recorreu aos métodos mais clássicos da conivência empresarial: acordos secretos de não-recrutamento (“no-poach”), repartição de mercados e troca de informação sensível — tudo à margem das regras europeias da concorrência.
Cartel digital: um novo rosto para um velho crime económico
Segundo a decisão da Comissão Europeia, entre 2018 e 2022, a Delivery Hero e a Glovo celebraram uma série de acordos informais com o objectivo de não se “roubarem” mutuamente trabalhadores, evitando guerras de preços e salários mais competitivos. Em paralelo, trocaram dados comerciais confidenciais, incluindo volumes de negócios, custos e planos de expansão .
Estas práticas, ilegais à luz do artigo 101.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, foram desenhadas para manter margens de lucro elevadas — à custa da liberdade de escolha dos trabalhadores e da competitividade do sector.
A Comissária europeia da Concorrência, Margrethe Vestager, foi clara:
“Este é um caso emblemático. Demonstra que os acordos para dividir mercados e limitar a mobilidade dos trabalhadores são tão graves como qualquer outro cartel tradicional.”
O impacto: menos concorrência, menos direitos
A cartelização do sector teve um impacto directo nos estafetas, sobretudo os que tentavam mudar de plataforma em busca de melhores condições. Ao serem impedidas de recrutar trabalhadores umas das outras, as empresas conseguiram manter remunerações baixas e fragmentar a organização laboral, dificultando a acção colectiva e a sindicalização.
“O que aconteceu foi uma captura do mercado de trabalho por empresas que fingem não ser empregadoras, mas que agem como tal quando se trata de manter o controlo”, explica Rita Mendes, jurista especializada em direito da concorrência e professora na Universidade Nova de Lisboa.
“O acordo ‘no-poach’ é uma forma de aprisionamento económico.”
Em Portugal, embora o caso não tenha tido expressão mediática imediata, os efeitos são tangíveis. A ausência de uma terceira grande plataforma de entregas criou uma falsa sensação de escolha, enquanto as duas dominantes impuseram regras cada vez mais restritivas aos estafetas — com penalizações opacas, critérios de desempenho impenetráveis e um sistema de recompensas que favorece a fidelização acrítica à app.
A cultura da impunidade
A investigação da Comissão Europeia começou em 2022, com buscas simultâneas a escritórios da Delivery Hero, Glovo e de outras empresas do sector. A Glovo — agora subsidiária da alemã Delivery Hero — colaborou parcialmente com a investigação, o que lhe garantiu uma redução de 10 % na multa aplicada.
No entanto, nem todas as plataformas foram investigadas com igual profundidade. Alguns analistas denunciam a existência de uma cultura de impunidade em torno da economia de plataformas, potenciada pela sua fragmentação e pelo marketing agressivo de inovação.
“A economia digital não pode ser um espaço sem lei”, defende João Santos Silva, do Observatório do Trabalho Digital.
“Este caso mostra que as práticas clássicas de cartel não desapareceram — apenas se digitalizaram.”
Uma oportunidade política (e judicial)
O caso Delivery Hero–Glovo representa uma inflexão na forma como a União Europeia encara os abusos de poder no sector digital. Pela primeira vez, a questão laboral foi integrada numa análise económica da concorrência. Isto abre a porta a novos tipos de litígios colectivos, tanto por parte de consumidores como de trabalhadores, que podem alegar prejuízos decorrentes destas práticas.
Em Espanha, vários sindicatos já anunciaram a intenção de avançar com acções judiciais para exigir indemnizações aos estafetas prejudicados. Em Portugal, os sindicatos da CGTP e da FECTRANS estudam medidas semelhantes, embora aguardem ainda pela transposição plena da Diretiva Europeia sobre Trabalho em Plataformas.
A referida diretiva, aprovada em 2024, exige dos Estados-Membros mecanismos legais para reclassificar os trabalhadores erradamente considerados independentes e reforça os deveres de transparência algorítmica das plataformas.
E agora?
O que aprendemos com este caso? Que a inovação, sem regulação, pode tornar-se terreno fértil para a velha exploração. Que o controlo digital do trabalho é tão eficaz quanto invisível. E que a justiça económica não pode continuar a ignorar a realidade dos milhões de pessoas que, todos os dias, entregam comida sem saber se terão rendimento suficiente para o dia seguinte.
O cartel dos estafetas foi desfeito. Mas o modelo de negócio que o sustentou continua em vigor. E a batalha por um trabalho digno, transparente e regulamentado está longe de estar ganha.