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Resumo

  • O tom reiterativo, o alinhamento com a diplomacia de Israel, a ausência de nuances e a constante desvalorização do sofrimento palestiniano geraram reacções públicas, desde o campo jornalístico ao académico.
  • A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) tem competências para intervir quando há quebra de princípios como o pluralismo, a veracidade e a distinção clara entre informação e opinião.
  • O que não é admissível — sob o pretexto da liberdade de expressão — é manipular o discurso público para promover uma versão da realidade onde apenas um….

Lisboa, 2 de Agosto de 2025 — “Do lado da democracia israelita, do lado dos judeus. Por convicção.” Assim se define Helena Ferro Gouveia, comentadora regular da CNN Portugal e uma das vozes mais audíveis no panorama mediático português sobre o conflito israelo-palestiniano. Mas num tempo de guerras de informação, fronteiras difusas entre factos e narrativas e responsabilidades editoriais em disputa, importa perguntar: quando é que uma opinião deixa de ser só opinião?

E, sobretudo: quem deve regulá-la?

As declarações de Gouveia têm sido alvo de intensa crítica — e não apenas por adversários ideológicos. O tom reiterativo, o alinhamento com a diplomacia de Israel, a ausência de nuances e a constante desvalorização do sofrimento palestiniano geraram reacções públicas, desde o campo jornalístico ao académico. Mas o centro da controvérsia já não é apenas o conteúdo. É a função que esse discurso desempenha no espaço público.

O paradoxo da liberdade de expressão

A liberdade de expressão é um dos pilares das sociedades democráticas. No entanto, nenhuma liberdade é absoluta. A jurisprudência europeia estabelece limites quando a expressão promove ódio, incita à violência ou dissemina desinformação com impacto mensurável. Mas o que fazer quando a propaganda se apresenta sob o disfarce de comentário?

Ferro Gouveia não é jornalista de formação activa, mas comentadora. Como tal, não está formalmente vinculada ao Código Deontológico dos Jornalistas Portugueses. No entanto, exerce funções num canal de informação de referência, detém prestígio público e contribui activamente para a construção da opinião pública. A sua influência é real. A sua responsabilidade também o deveria ser.

A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) tem competências para intervir quando há quebra de princípios como o pluralismo, a veracidade e a distinção clara entre informação e opinião. No entanto, na prática, os mecanismos são lentos, e os critérios ambíguos. O resultado: um vazio normativo onde a convicção pessoal pode, sem travões, converter-se em campanha ideológica.

Jornalismo ou trincheira?

Nos seus comentários sobre o conflito em Gaza, Ferro Gouveia raramente cita fontes independentes. Reproduz argumentos de Telavive, omite sistematicamente os números de vítimas civis (mais de 43 mil, segundo a ONU), e classifica os protestos pró-Palestina como “movimentos com traços antissemitas”. No debate televisivo, as suas falas surgem quase sempre sem contraditório eficaz — num ambiente que naturaliza o seu posicionamento como “equilibrado” ou “informado”.

Mas será que um comentário que recusa o reconhecimento do sofrimento do outro, nega a catástrofe humanitária e retira humanidade aos mortos pode ser considerado apenas uma opinião legítima?

Ou estamos perante uma forma moderna de propaganda: sofisticada, bem falada, empática com os valores ocidentais — mas ideologicamente fechada?

O papel das direcções editoriais

A responsabilidade não recai apenas sobre quem fala. Quem dá o microfone, escolhe os rostos, estrutura os painéis e desenha os formatos também molda o espaço público. Se uma voz é reiteradamente escolhida para representar a “análise internacional”, e essa voz adopta uma leitura monocórdica, então há uma decisão editorial com efeitos estruturais.

A pluralidade exige mais do que colocar diferentes comentadores lado a lado. Exige equilíbrio real na escolha dos temas, rigor na confrontação de dados, diversidade de quadros ideológicos e compromisso com o esclarecimento do público.

Convicção não é licença para a distorção

É legítimo ter posições firmes. Mas quando essas posições ocupam o centro do debate público, a responsabilidade de quem as defende deve ser proporcional à sua influência. Helena Ferro Gouveia apresenta-se como uma especialista informada, com experiência no terreno e leituras históricas consolidadas. Mas essa autoridade não pode servir de escudo para a distorção factual, nem para a omissão sistemática de sofrimento humano.

É possível defender Israel e, ao mesmo tempo, reconhecer a dor palestiniana. É possível condenar o Hamas e ainda assim exigir que Israel respeite o direito internacional. É possível defender a democracia sem ignorar os crimes de guerra.

O que não é admissível — sob o pretexto da liberdade de expressão — é manipular o discurso público para promover uma versão da realidade onde apenas um lado é humano, e o outro é um obstáculo à paz.

E quem regula o regulador?

Em última instância, talvez a questão mais inquietante seja esta: se os reguladores não actuam, se os editores não impõem critérios de equilíbrio, se o espaço mediático se deixa colonizar por vozes alinhadas com governos estrangeiros, quem protege o público?

O silêncio institucional, o medo da polémica e o relativismo editorial estão a permitir que figuras como Helena Ferro Gouveia operem num território livre de responsabilização. E isso, mais do que uma falha ética, é uma ameaça concreta à saúde democrática da informação em Portugal.

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