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Resumo

  • Bogotá, 28 jul 2025 – A Cúpula de Bogotá terminou com a aprovação de seis medidas coordenadas pelo Grupo de Haia, destinadas a combater o que os seus membros descrevem como uma “crise sistémica de impunidade”.
  • Num clima de firmeza e pragmatismo, os representantes de 34 Estados assinaram o documento final da Cúpula, definindo um roteiro jurídico e político inédito para o Sul Global.
  • Países como a Malásia, a Bolívia e a África do Sul anunciaram suspensão imediata de licenças de exportação com destino a Israel.

Bogotá, 28 jul 2025 – A Cúpula de Bogotá terminou com a aprovação de seis medidas coordenadas pelo Grupo de Haia, destinadas a combater o que os seus membros descrevem como uma “crise sistémica de impunidade”. À cabeça da agenda está a implementação de sanções logísticas, financeiras e diplomáticas contra Israel, no seguimento dos mandados de detenção emitidos pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) contra altos responsáveis israelitas. Mas as implicações das decisões tomadas vão muito além do conflito israelo-palestiniano.

Num clima de firmeza e pragmatismo, os representantes de 34 Estados assinaram o documento final da Cúpula, definindo um roteiro jurídico e político inédito para o Sul Global. O texto, intitulado Pacto de Bogotá pela Justiça Internacional, contém compromissos operacionais que vão desde a cooperação judicial activa à ruptura de contratos com empresas envolvidas em crimes de guerra.

Seis medidas com impacto potencial
As seis medidas principais, segundo o texto oficial da Cúpula, são:

  • Execução dos mandados do TPI contra líderes israelitas, incluindo a obrigação de detenção em território dos Estados aderentes;
  • Embargo militar e logístico a Israel, com efeitos imediatos sobre transporte, armamento e tecnologia de dupla utilização;
  • Corte de contratos com empresas identificadas pela ONU como operando em territórios ocupados da Palestina;
  • Criação de um fundo internacional para vítimas de crimes de guerra;
  • Coordenação diplomática para promover resoluções no Conselho de Direitos Humanos da ONU;
  • Alargamento da jurisdição universal para crimes cometidos em zonas de conflito, com base em legislação nacional adaptada.

Segundo o jurista angolano Mário Simões, professor na Universidade de Pretória, este pacote representa “a mais clara tentativa de aplicação coordenada do direito internacional fora do eixo euro-atlântico desde a fundação do TPI”. A seu ver, “não se trata de retórica simbólica, mas de decisões com impacto legal imediato, caso os países cumpram o que assinaram”.

Fact-check: o que muda de facto?
A questão central permanece: estas medidas são aplicáveis? Têm força legal? Podem alterar o comportamento de Israel ou provocar mudanças no palco internacional?

A resposta é mista. A execução de mandados do TPI depende da ratificação e da vontade dos Estados signatários. Vários países presentes em Bogotá já integram o Estatuto de Roma e, teoricamente, estariam obrigados a cooperar. No entanto, na prática, o TPI enfrenta há décadas obstáculos à aplicação dos seus próprios mandados — como se verificou com os casos do Sudão e da Rússia.

O embargo militar e logístico, por seu lado, é de aplicação nacional e não exige mecanismos internacionais. Países como a Malásia, a Bolívia e a África do Sul anunciaram suspensão imediata de licenças de exportação com destino a Israel. Fontes governamentais em Jacarta confirmaram que estão a rever contratos com duas empresas de armamento envolvidas na exportação de sistemas de vigilância para o exército israelita.

A medida mais controversa diz respeito às empresas envolvidas na ocupação da Palestina. A lista de referência — elaborada pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU — inclui multinacionais conhecidas, como Caterpillar, Motorola Solutions e Booking Holdings. A Bolívia já anunciou a rescisão de contratos com empresas dessa lista, e há sinais de que outros países seguirão o exemplo.

A criação de um fundo para vítimas é simbólica e dependerá de contribuições voluntárias. Até ao momento, três países prometeram financiamento inicial: Argélia (10 milhões USD), Indonésia (7,5 milhões USD) e Senegal (3 milhões USD).

A proposta de jurisdição universal alargada levanta questões constitucionais em vários países. Mas há precedentes. A Bélgica, por exemplo, já aplicou o princípio nos anos 1990, permitindo processos contra estrangeiros por crimes cometidos fora do território nacional.

Reacções e desafios
Israel classificou o resultado da Cúpula como “um ataque jurídico hostil promovido por Estados cúmplices de organizações terroristas”. O ministro dos Negócios Estrangeiros israelita, Eliav Kohen, acusou os signatários de “hipocrisia moral” e prometeu responder com “medidas diplomáticas proporcionais”.

Do lado europeu, as reações foram cautelosas ou ausentes. A França, que se absteve na votação da última resolução da ONU sobre Gaza, não comentou o conteúdo da Cúpula. Em Bruxelas, fontes da Comissão Europeia confirmaram que estão a ser avaliadas “as consequências legais da adesão de Estados terceiros a sanções extrajudiciais”.

Já nos Estados Unidos, o Departamento de Estado sublinhou que “qualquer tentativa de isolar Israel através de mecanismos fora da ONU será entendida como uma afronta à ordem internacional baseada em regras”.

A palavra aos peritos
Para a jurista portuguesa Raquel Mendes, especialista em direito internacional humanitário, “o desafio agora é a execução coerente destas medidas. Sem mecanismos de verificação, o risco é cair numa lógica declarativa”. No entanto, acrescenta, “a simples existência de um grupo tão numeroso a actuar fora dos marcos tradicionais é, em si, uma mudança tectónica”.

O economista moçambicano Armando Sequeira alerta para os efeitos secundários: “Empresas com contratos globais vão repensar as suas estratégias. E o risco reputacional, associado à cumplicidade em crimes de guerra, torna-se uma variável mais sensível.”

Conclusão: A Cúpula de Bogotá não marcou apenas mais uma declaração de intenções. Ao aprovar medidas com aplicação directa e a curto prazo, o Grupo de Haia lançou um desafio frontal ao status quo jurídico global. Se estas decisões forem seguidas por actos concretos — detenções, embargos, sanções — poderá estar a desenhar-se um novo mapa da justiça internacional. Um mapa onde o Sul Global não quer mais ser espectador.

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