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Resumo

  • Em tempos de relatórios e metas estatísticas, o rendimento disponível tornou-se o farol da análise social.
  • O relatório Portugal, Balanço Social 2024 convida a olhar para o que os números não mostram.
  • soma-se o rendimento de um agregado familiar, divide-se por um “factor de equivalência” — ou seja, um cálculo que tenta ajustar os gastos consoante o número de pessoas e as economias de escala.

Por Redacção

Em tempos de relatórios e metas estatísticas, o rendimento disponível tornou-se o farol da análise social. Medem-se taxas de pobreza, avaliam-se prestações sociais, comparam-se países — tudo à luz de um número: o rendimento “equivalente” por pessoa. Mas até que ponto esse valor reflecte o que se vive, gasta e sente numa casa portuguesa? O relatório Portugal, Balanço Social 2024 convida a olhar para o que os números não mostram.

Porque uma coisa é o que a folha de cálculo diz que “devia chegar”. Outra é o que efectivamente chega ao fim do mês.

O que é o rendimento “equivalente”?

É simples, na teoria: soma-se o rendimento de um agregado familiar, divide-se por um “factor de equivalência” — ou seja, um cálculo que tenta ajustar os gastos consoante o número de pessoas e as economias de escala. Por exemplo, um adulto sozinho tem factor 1, o segundo adulto conta como 0,5, e cada criança como 0,3.

Assim, uma família de dois adultos e duas crianças com 2.000 euros mensais “equivaleria”, em termos de poder de compra, a uma pessoa com 909 euros. É esse valor que se compara ao limiar de pobreza.

Parece razoável? Talvez. Mas tem buracos.

Porque este método parte de pressupostos que raramente resistem à realidade. Supõe que viver em conjunto reduz proporcionalmente os custos — o que nem sempre é verdade. E ignora disparidades regionais, despesas extraordinárias (como medicamentos ou necessidades especiais) e até factores culturais.

“O Estado assume que eu e os meus filhos gastamos menos porque vivemos juntos. Mas os bilhetes de autocarro são os mesmos, os almoços também. E eu ganho o mesmo, com mais responsabilidades.” — lamenta Patrícia, mãe solteira, em Braga.

O que os números não contam

  1. O custo real da vida: O limiar de pobreza é calculado com base em rendimentos, não em despesas. Mas viver em Lisboa ou na Guarda tem preços radicalmente diferentes. A mediana nacional pode não fazer sentido numa cidade com rendas a mil euros.
  2. Despesas fixas incompressíveis: Electricidade, gás, rendas, passes, propinas, dívidas. Muitas famílias têm encargos fixos que consomem mais de metade do rendimento. O que sobra para viver é muito menos do que o que “equivale” no papel.
  3. A pobreza oculta: Há quem não esteja “tecnicamente” em pobreza, mas que não consegue pagar férias, substituir um electrodoméstico avariado ou responder a uma emergência médica. São os chamados “quase pobres” — que os indicadores ignoram.
  4. A pobreza dentro da riqueza: Num agregado com um bom rendimento total, pode haver membros (como crianças, idosos ou dependentes) sem qualquer autonomia financeira. A equivalência disfarça essas desigualdades internas.

Estatística não é destino — mas molda políticas

O problema não é medir. É decidir políticas públicas com base em medidas que não captam o real. Se o limiar de pobreza está abaixo do custo de vida real, milhares ficam fora dos apoios. Se o rendimento equivalente “diz” que se vive bem, corta-se onde mais se precisa.

É preciso cruzar indicadores, ouvir as pessoas, contextualizar dados. A pobreza não se resolve com fórmulas matemáticas. Resolve-se com proximidade, escuta e intervenção justa.Porque os números podem dizer muito —
Mas é na vida concreta que se mede a dignidade.

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